“Além da linha abissal”: entrevista com Boaventura de Sousa Santos

Entrevista concedida a Lucas Verzola e Arthur Lungov, editores da Lavoura

Durante toda a história da formação do cânone ocidental, o método de hierarquização dos saberes seguiu a lógica dos donos do poder, cujos princípios se apresentam, tautologicamente, como universais. Segundo o pensamento sociológico de Boaventura de Sousa Santos, tal expediente, nas sociedades modernas, se alicerça em três grandes formas de dominação: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Como consequência imediata, surge uma metafórica fronteira que divide nações e grupos de indivíduos entre reconhecidos e proscritos, aceitos e apartados, admitidos e párias: a linha abissal.

Numa época em que cada vez mais muros são erigidos, não só metaforicamente, a Lavoura conversou com o professor catedrático da Universidade de Coimbra sobre a sua compreensão do encargo da linha abissal na formação das sociedades e do papel do artista como agente transformador e denunciador.


Lavoura: Na sua obra acadêmica, o senhor fala do conceito de linha abissal, uma demarcação socialmente construída que divide aqueles cuja humanidade é reconhecida e aqueles que têm sua condição humana negada. Os primeiros, cidadãos; os segundos, marginais. O artista é figura ambígua dentro desse sistema. Ora será agente que transita entre esses dois espectros, ora caminhará exatamente sobre essa linha. Qual a função do artista, tanto na relativização dessa linha quanto na sua construção? O mero fato de haver esse trânsito contribui para a porosidade ou, antes, confirma e, de certa forma, legitima sua existência?

Boaventura: É uma boa pergunta. Nós podemos distinguir, na modernidade ocidental, três grandes formas de racionalidade: a racionalidade cognitiva instrumental, que é da ciência e da tecnologia; a racionalidade moral prática, que é do direito, da moral e da ética; e a racionalidade estética expressiva, que é da arte e da literatura. Esta última racionalidade sempre teve um estatuto especial, por ser aquela que de alguma maneira mostrava os aspectos do belo, da produção da sociedade e, como tal, não interferia diretamente na vida concreta da política, da economia e das soluções que a sociedade ia encontrando. Decorre daí a figura da aura, incentivada e levada ao paroxismo pelos românticos. E a aura tem um preço: a marginalização. Isto é, o artista é aquele que está fora, é superior e, portanto, esta não conta, não interfere. O que ele disser tem que ser entendido dessa forma, nesse contexto. Esta forma da racionalidade criou algumas especificidades para a arte e para a literatura no nosso tempo, e essas especificidades podem ser utilizadas, em meu entender, ou ser tidas em conta, quando nós procurarmos dar-lhe outro entendimento. Isto é, que esta aura primordial não seja uma aura de inutilidade, do sublime, de algo que nos faz bem porque confirma o nosso desejo do belo, mas que não transforma a nossa vida porque não tem condições para fazer de uma maneira consistente e efetiva. Porque nós somos também seres de prática, e essa vida prática tem nos arranjos sociais, econômicos e políticos, as suas formas fundamentais. E a arte, de alguma maneira, está um pouco alheada disso. E isso foi o que fez com que a arte e a literatura ficassem de de algum modo subdeterminadas, não foram tão sujeitas a uma vigilância epistêmica e política como foram os regimes econômicos e os regimes políticos, que evoluíram para regimes legítimos e ilegítimos; enquanto, na arte, há mais liberdade de criar gêneros artísticos e literários. E, portanto, não houve um policiamento, a não ser nos tempos da ditadura, em que houve uma disciplina, naturalmente, sobre os conteúdos ideológicos da própria arte. Fora isso, a arte teve mais liberdade de ser o que pretendia ser. Muito bem, esta liberdade, a meu entender, foi uma liberdade que foi perfeitamente funcional às sociedades capitalistas modernas. Nestas sociedades, essa aura não serviu para problematizar, em geral, as formas de dominação que caracterizam nossa sociedade, de maneira nenhuma. E, portanto, ela foi uma arte do tipo hegemônica, uma arte que confirmou os modos de dominação hegemônicos.

Ainda nesse aspecto, pareceria um tanto romântico crer que simplesmente o fazer artístico igualaria os indivíduos que o executam, uma vez que é clara a diferença do trânsito de um artista que vem de uma posição de privilégio em relação ao trânsito do artista que vem das margens. Existe algo a ser feito para que essa igualdade ideal possa ser perseguida? Se existir, trata-se de aspectos intrínsecos ou exteriores à atuação artística?

Os artistas, em geral aqueles que nós conhecemos mais de todo este período moderno, não foram artistas que estivessem preocupados muito com a questão do capitalismo, do colonialismo ou do patriarcado, as três formas de dominação com as quais eu caracterizo as sociedades modernas. Sem embargo, devido a essa posição de uma, digamos, marginalidade aurática da arte, também se permitiu que ela pudesse ter outros papéis contra-hegemônicos, que os artistas se rebelassem contra este estatuto e o pusessem em pauta. Os modernistas são logo um bom exemplo dessa rebelião. Os construtivistas russos não vão querer ser marginados da construção da sociedade nova e querem participar ativamente dela. Os modernistas fazem apologia da sociedade nova e querem-no fazer indo, aliás, contra todos os cânones da arte, da literatura, da pintura que eram dominantes no século XIX e no começo do século XX. É um período de grande revelação e de grande inovação. Essa capacidade de rebelião, de se insurgir, foi realizada de modo que apenas confirmava esse aspecto aurático e marginal da arte. Eu, no entanto, entendi muito cedo que essa aura tinha, também, a possibilidade de ter uma função crítica que, aliás, foi assumida por muitos desses pintores e artistas do princípio do século XX no sentido de usarem essa aura para fazerem críticas à sociedade que não estavam a ser feitas dentro dos cânones políticos, econômicos e sociais vigentes na época. E isto também foi, talvez, o primeiro sinal daquilo que eu poderia caracterizar como outra concepção de arte e literatura no campo das epistemologias do sul. Ora bem, e aqui começam os problemas. Por quê? Para as epistemologias do sul é fundamental entender que as sociedades modernas, isto é, as sociedades com dominação eurocêntrica desde o século XVI, nunca existiram sem esta linha abissal que as divide em formas de sociedade e de sociabilidade metropolitana e formas de sociedade e de sociabilidade colonial. Porque dentro de uma mesma sociedade, aqui, por exemplo, em São Paulo, há sociabilidade metropolitana, como no lugar em que nós estamos, mas há também a sociabilidade colonial nas favelas, nas periferias, nas quebradas, com comportamentos sociais totalmente distintos, quer das instituições, quer daqueles que lá vivem. E, portanto, esta arte de alguma maneira foi cúmplice de toda esta tradição colonial. Mas logo aí fez uma primeira transgressão, e essa primeira transgressão, a meu entender, foi a de poder transformar o colonialismo numa matéria-prima. O capitalismo, no final do século XIX, sobretudo depois da Conferência de Berlim, exatamente entre 1884 e 1885, estava num período de tentar ocupar efetivamente a África para poder extrair todas as suas riquezas.

Acontece que os artistas fizeram uma linha de frente. Vamos tomar como exemplo o caso do primitivismo. Um nome mau, obviamente, para uma corrente artística – em que Picasso vai ser um dos pioneiros, ele e outros colegas que trabalharam com ele naquele momento em Paris – que vai consistir no seguinte: olhar a entrada dos produtos do artesanato africano que estavam a chegar em Paris depois daquele Congresso de Berlim e da ocupação territorial. Eram objetos de arte, arte igbo, por exemplo, a arte de toda a África Oriental, que era riquíssima, tinham exposições artísticas extraordinárias, os iorubas etc., mas que chegavam a Paris como artesanato. Esses artistas tomaram a iniciativa de visitar os lugares de artesanato para comprar peças e começar a transformar a sua própria arte em função de tudo aquilo. Portanto o primitivismo é um exemplo de como esses artistas, e notadamente Picasso, vão olhar para esses objetos de artesanato e começarão a ver o que os objetos têm de efeito transformador na sua arte. E eles, afinal, têm o efeito de reconstruir toda a sua arte. A partir daí, por exemplo, em um dos primeiros quadros de Picasso, que é Les demoiselles d’Avignon, já há, de alguma maneira, uma influência africana no seu trabalho. Aqui indiretamente encontramos uma ambiguidade. Por um lado, esses artistas vão receber influência da arte que vem da margem, neste caso do ponto de vista do colonialismo. De outro, vão utilizar o material de uma maneira realmente extrativista.

A linha abissal, além de dividir indivíduos, contribui para a construção geopolítica dos países. Do lado certo da linha, países de passado e presente colonialista, polos de irradiação cultural e econômica do que chamamos de Ocidente; do lado errado, o terceiro mundo. Este último, espaço especialmente difícil para a produção artística, presa em uma indefinição identitária gerada no colonialismo e agravada pelo imperialismo cultural. Nesse cenário, o artista deve perseguir antes a produção de uma obra identitária, no sentido de demarcar um projeto estético e cultural que seja próprio de seu contexto, ou procurar uma conversa mais universalizante com seus pares fora de sua realidade imediata? Há o risco de, de um lado, o isolamento agravado que apenas contribui para a manutenção da situação periférica, e, do outro, de uma descaracterização diluída?

Nós temos que dar um salto e ver que, do outro lado da linha abissal, há realmente arte, que tem que ser validada pelos seus próprios critérios e não pelos critérios eurocêntricos que presidem a sociabilidade metropolitana.

O primitivismo, como eu disse, é um bom exemplo de como as ambiguidades da arte no princípio do século XX são extraordinariamente produtivas para vermos em que situação nos encontramos neste momento a respeito da linha abissal. Picasso e seus colegas veem aqueles objetos e acham que são maravilhosos, que têm perspectiva e evolução artística completamente diferentes, e começam a aprender com essas obras. Desse olhar vai resultar o já mencionado quadro de Picasso. E o que se passa nesta altura? Primeiro, a ideia de que há um primitivismo num movimento extremamente eurocêntrico. É primitivismo porque vem dos primitivos africanos. Por outro lado, e contraditoriamente, Picasso, ao dar a projeção enorme que deu àqueles artistas africanos que inicialmente eram consumidos como apenas artesãos, altera o seu estatuto e transforma-os em artistas. A partir daí começa a haver uma curiosidade enorme sobre a arte africana. Portanto houve uma utilização inicial que foi extrativista, eu diria. Tentava extrair do conhecimento africano artístico uma nova forma de arte. O que aconteceu com o chamado primitivismo. Mas que depois vai ter, também, como recompensa, dar uma visibilidade extraordinária a essa arte africana, que passou a ser, obviamente, reconhecida em todo o mundo. E vemos outros casos em que, digamos, a arte, em relação ao colonialismo, se comporta de uma maneira mais ambígua. Precisamente sobre o que um é capaz de fazer com o outro, ao contrário do colonialismo econômico que quer apenas extrair e não quer reconhecer o outro e a autonomia do outro. Picasso aprendeu muito no respeito à perspectiva. Nós não podemos compreender o Picasso, sobretudo a face surrealista, sem toda essa presença africana de arte a que teve acesso.

A mesma coisa se passa anos mais tarde com o Batik, uma forma de pintar sobre tecido em que, com barro, se colocam as áreas que devem ser cobertas e não pintadas, e depois há uma pintura, uma tinta, que se aplica no tecido, e com isso se fazem roupas, saias ou as capulanas, como se chama em Moçambique, que são grandes mantas que podem ser usadas para cobrir a cabeça, o peito ou o tronco, muito comuns na África. A técnica Batik surge também no Caribe e na América Latina e, a exemplo do artesanato africano, não tem estatuto artístico para o cânone. Mas são obras igualmente artísticas tanto que realmente se viu a oportunidade e a possibilidade, no caso do Batik, de transformar aquilo numa “nova” arte. O artesanato africano passou a ser visto como arte e a própria Batik, produzida na África, transformou-se em arte. Ou seja, houve aqui uma transmutação e uma transfiguração do próprio objeto através deste contato de culturas que, de alguma maneira, podemos dizer que é tão explorador quanto o outro. Mas eu não ia entender o valor do conhecimento do outro que não era possível por nenhum valor econômico ou político. Agora, é evidente que isto confirmou a linha abissal. Confirmou a ideia de que há outras sociedades que não estão dentro do cânone da arte europeia e que, de alguma maneira, vão ajudar que os próprios europeus ampliem o cânone extraordinariamente quando veem que, em outras partes do mundo, outras formas de produzir arte são possíveis e eles podem a partir delas transformarem-se. Mas essa é uma primeira fase, eu diria, reservada àqueles artistas que nós nos habituamos a reconhecer como artistas consagrados. Os artistas consagrados foram consagrados, obviamente, no dual de cada linha abissal, isto é, nas sociedades metropolitanas.

O senhor mencionou a obra de arte na sua idade aurática e falou do desafio de tentar rompê-la, talvez utilizando da própria aura para, posteriormente, mostrar como desvirtuar a arte original e criar uma nova concepção artística. Maiakovski diz que não há arte revolucionária sem forma revolucionária, e algumas formas de arte feitas do lado de lá da linha abissal são revolucionárias da perspectiva do cânone. Esse movimento é voluntário dos artistas do lado de lá da linha abissal para fazer também uma espécie de arte revolucionária ou nem sempre há essa consciência quando isso é feito?

A forma revolucionária surge da própria necessidade das comunidades em que elas existem. A juventude está sujeita a muitas formas de violência e, de alguma maneira, esta violência vai se transformar em forma estética, digamos. É o caso do rap, o caso, por exemplo, do scratch, que é uma forma, digamos, de desconstruir a harmonia musical, transformando-a numa arte de intervenção brutal sobre os próprios discos e sobre a própria construção artística. Todos eles se assentam na ideia de uma inovação que tem muito a ver com o corpo. Isto é, eu acho que o caráter revolucionário da arte do lado de lá da linha abissal, da sociabilidade colonial, caracteriza-se por mobilizar o corpo a um nível que não era comum nas outras formas artísticas. O breakdance é um bom exemplo, uma vez que envolve uma luta de sentimentos, um envolvimento de emoções do corpo, do sentir. Uma experiência profunda dos sentidos que leva a formas estéticas diferentes. Muitas delas nascem de uma rebeldia contra certas concessões convencionais de harmonia, de ritmo etc. Portanto, há aqui uma ideia de rebeldia que não é propriamente revolucionária, digamos, não tem um plano de revolucionar a sociedade ou a arte. Mas há uma ideia de insurgência, de construir arte sem ser pelos cânones, que são os cânones convencionais. Portanto eu penso que, neste sentido, a forma é realmente uma forma revolucionária, rebelde, precisamente pela situação sociológica que esses jovens se encontram e o modo como eles se posicionam no mundo da arte.

Quando fala em epistemologias do sul, o senhor diz que ela se assenta em três orientações: aprender que existe o Sul, aprender a ir para o Sul e aprender a partir do Sul e com o Sul. A nossa impressão é de que as duas primeiras orientações são relativamente mais perseguidas pelo artista que vem de uma posição de privilégio do que a terceira. Uma segunda impressão é de que ao agir assim, o artista acaba visitando o Sul, mas não abre mão do local de privilégio em que ele está, se apropriando de aspectos que lhe são interessantes e que lhe permita manter a posição hegemônica em que se encontra. O senhor concorda com essa impressão? Como corrigir esta distorção do ponto de vista de um poeta que não está à margem?

Quando eu falo da arte e das epistemologias do sul, eu parto fundamentalmente da ideia de que, do outro lado da linha, na sociabilidade colonial, há artistas, há produções artísticas, musicais, literárias, que não são reconhecidas como tal porque só não estão dentro do cânone. Do cânone constituído obviamente pela literatura dominante, pela arte dominante e, portanto, por aquela que preside, digamos, a sociabilidade metropolitana. E, assim, o artista não é reconhecido como tal, como acontece muitas vezes com os grafittis, com o rap, com o próprio hip-hop, todo o hip-hop em seu conjunto não foi reconhecido inicialmente como arte, era uma manifestação de rebeldia, do submundo, da subcultura, mas que não tinha o estatuto artístico digno de uma galeria, digno de qualquer conhecimento museológico, digamos assim, e, portanto, é uma manifestação de arte à revelia do cânone. E é justamente essa a arte que eu acho interessante, tanto que é com ela que eu trabalho. Não quero dizer que os artistas convencionais na história são insensíveis. Alguns, Joseph Conrad, por exemplo, fizeram esse movimento de tentar caminhar pelo sul, de entender o sul, embora o fizessem sempre de uma maneira mais ou menos eurocêntrica, de uma maneira sempre atormentada, mas sempre eurocêntrica ao meu entender, e nunca pôde colocar-se do lado da experiência do outro. Ao passo que os artistas africanos, constituídos em seus países, estão sujeitos a uma sociabilidade colonial – e, como sabem, o colonialismo, pra mim, existe hoje como existia no passado, só que de outras formas e é composto por todas aquelas situações em que quem vive em certa forma de sociabilidade está sujeito a uma degradação ontológica, não é um ser pleno, é considerado um ser descartável, é considerado subumano ou porque é preguiçoso, ou porque é menos inteligente, porque é inferior, seja mulher, seja negro, seja indígena, ou porque está contra a História ou por qualquer outra razão. Nessa área, onde se produz para o conhecimento moderno uma sociologia das ausências tremenda, é que a própria racionalidade estética se faz possível, uma vez que, ao considerar que a literatura é uma literatura “convencional”, que está dentro do cânone, nós nos habituamos a reconhecê-la como tal.

E especificamente quanto ao artista proveniente de um local marginalizado, aquele que está para lá da linha abissal, e que passa a ter seu fazer artístico reconhecido pelo dono do poder, geralmente do poder financeiro?

Nós temos que dar um salto e ver que, do outro lado da linha abissal, há realmente arte, que tem que ser validada pelos seus próprios critérios e não pelos critérios eurocêntricos que presidem a sociabilidade metropolitana. Embora muitas vezes os artistas metropolitanos e as galerias metropolitanas, no momento em que se chama a atenção para um artista que está do outro lado da linha, de alguma maneira procuram incorporá-los, e procuram domesticar essa manifestação artística, fazer com que ela atravesse a linha abissal. O caso do Kobra aqui [no Brasil]. O caso de tantos artistas, dos grafiteiros, de Basquiat. Portanto, todos os artistas que não tendo sido reconhecidos como tal, a partir de certa altura são reconhecidos. Qual é a ambiguidade disso? É que o artista atravessa a linha abissal, mas a sua vivência, a sua comunidade, a sua favela, a sua quebrada, onde nasceu, onde viveu, de onde surgiu toda essa experiência, não atravessa a linha abissal. Continua a ser vítima de brutalidade policial, continua a ser vítima de degradação ontológica, continua a ser vítima de uma distribuição completamente desigual dos serviços públicos etc.; continua a ser uma zona do não-ser. Mas ele, individualmente, emerge. Portanto as epistemologias do sul mostram que esta emergência individual pode, politicamente, transformar-se em uma emergência coletiva.

É claro que não podem superar a linha abissal, não é essa a sua missão. Para isso precisamos de uma revolução social. Precisamos de uma luta anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal. Os artistas podem colaborar nessa arte, nesse processo.

A partir dessa conclusão, é possível dizer que o produto artístico daquele que se encontra além da linha abissal, quando, digamos, comprometido com a sua origem, pode se caracterizar como um fazer-artístico coletivo, em contraposição ao fazer individualista do sujeito que se vale daquelas três formas de dominação com as quais o senhor caracteriza as sociedades modernas?

O importante é valer-se de epistemologias que não desperdicem o conhecimento e as práticas de luta que ocorrem nessa área. E o curioso é que os artistas que nascem e que vivem nessa área e que nascem dessa experiência são todos artistas públicos, isto é, são artistas extremamente comprometidos com a situação de seu povo. Aliás, [Fredic] Jameson a certa altura fez uma comparação que eu quase poderia adaptar a esta concepção: os artistas, sobretudo escritores, do primeiro mundo representam o indivíduo, e as suas novelas e seus romances são, basicamente, uma história sobre um indivíduo – ainda que num contexto social, obviamente. Já os artistas, os escritores do chamado terceiro mundo, do sul global, eles nunca têm como protagonista um indivíduo. O protagonista é o povo. Nesse sentido, por exemplo, os indivíduos que aparecem nas novelas do Gabriel García Márquez são um único: o próprio povo colombiano, são os camponeses colombianos que estão ali, é a sociedade colombiana que está ali. Portanto, tem a ideia de criar coletivos, que são coletivos que o artista vai buscar. Então esse artista tem uma potencialidade enorme de captar esse lado público de intervenção e de solidariedade com seu povo. Obviamente que há muitos que depois se deserdam dessa herança, se despedem dela. Famosos casos como Jay-Z ou Kanye West, no caso do rap, que ao serem reconhecidos pela indústria musical de entretenimento mudam de ideias, passam a ser elogiosos, vão [no caso de Kanye West] cumprimentar o Trump, deixam de ter qualquer identidade com as sociedades vítimas de racismo, de discriminação, de que surgiram. Mas muitos se mantiveram fiéis e continuam fiéis, exatamente, àquela ideia de rebeldia, de trazer a denúncia do que se passa nas suas sociedades, do outro lado da linha abissal. E essa denúncia é extremamente forte porque é uma denúncia que não pode ser mais apenas um grito de raiva, que como um grito de raiva não passa de um ruído para os ouvidos dominantes. É um grito de raiva esteticamente construído. Ele é belo apesar de partir de critérios estéticos diferentes, no caso do rap. O rap, aliás tem muitas coincidências em termos de tonalidade com o canto gregoriano, mas são, realmente, manifestações artísticas esteticamente novas. Ou seja, elas vêm enriquecer o cânone estético. E hoje, em plena cultura de entretenimento, realmente chama-se mais essa atenção. E isso, obviamente, tem um lado, digamos, menos genuíno, pelo fato de eles poderem ser aproveitados do outro lado da linha e se esquecerem de suas comunidades. Mas há também um lado genuíno, que se manifesta quando eles aumentam a autoestima de suas comunidades. Eu acabei de fazer um vídeo para o MC Rafa do grupo Rafuagi, do Rio Grande do Sul, que criou uma casa hip-hop, onde eles estão a transformar crianças dependentes químicos em pequenos artistas, com aulas de break dance, scracth, DJs etc., e agora quer fazer uma iniciativa popular. Ele me mandou uma mensagem dizendo que gostaria muito que eu os ajudasse a construir essa iniciativa. Veja como partir: um rapper, com consciência social, ir atrás outros a tentar transformar a sua comunidade a partir da autoestima. E falo, de alguma maneira, que é um processo de conscientização, como dizia Paulo Freire. É o mesmo que faz o Renan Inquérito, outro rapper que trabalha comigo, que, em estações ferroviárias abandonadas de cidades no interior de São Paulo, organiza as paradas poéticas; que praticamente é fazer com que as pessoas dos bairros, das quebradas, das comunidades dali comecem a escrever poesia e que, às primeiras segundas-feiras do mês, apresentem suas poesias e as leiam. Isso é extraordinário para as comunidades que são vistas pela sociedade paulista como sendo formada por bandidos, por criminosos e por drogados, porque realmente essa atividade lhes dá autoestima.

O que eu estou a fazer é, na minha epistemologia, contribuir para transformar uma sociologia das ausências, isto é, aquilo que não se vê, em uma sociologia de emergências. Eles partem daquilo que é produzido como não existente e começam a surgir novas formas artísticas. E essas são as emergências. Isso, ao meu entender, expande o presente, torna-os presente. E, portanto, o que eles estão a fazer? Denunciando a linha abissal! Eles mostram que existe uma linha abissal. Há tanta criatividade do outro lado. Eles não estão a tentar apagar a linha abissal. Pelo contrário, eles vincam a linha abissal. Porque o caráter radical da linha abissal é que não se a vê, tal como o Deus das igrejas católicas ou judaico-cristãs. Inventaram uma entidade que é tão poderosa quanto a sua ausência. É como escreve José Saramago: Deus é o silêncio do universo. Pois bem, é exatamente isso que eles procuram fazer: transformar essa ausência total e o não reconhecimento em uma outra forma de sociabilidade que não é aquela sociabilidade colonial da bandidagem, de indignidade, do crime. Mas, pelo contrário, tem artistas extraordinários que aumentam sua autoestima e que fazem a sua educação. Identificam e denunciam essa linha abissal. Não apagam; denunciam. Se contribuem ou não para ela ser superada, é outra história. Mas se ela puder ser superada, não será apenas retoricamente, ou seja, não adiantaria somente dizer “não acreditamos nessa linha abissal”. E essa travessia da linha abissal normalmente faz-se de maneira individual. Muitos deles passam a ser reconhecidos, mas eles sabem, têm consciência de que a sua quebrada, a sua comunidade, está no lugar onde sempre esteve. E eles têm que continuar a lutar para que mais jovens tragam outros, para que a comunidade ela própria vá alterando a sua maneira de estar para se poder enriquecer com mais formas de sociabilidade metropolitana, mas autonomamente. Não por aquilo que é concedido do lado metropolitano, mas por aquilo que eles conseguem por si mesmos.

A arte não resolve os problemas do mundo, mas mostra o mundo simultaneamente mais feio porque mais dividido, de uma forma injusta e abissal, ao mesmo tempo em que mostra que há beleza do outro lado e que não é o mundo entre a civilização e a barbárie. É o mundo entre duas formas de viver. Uma cuja dignidade assenta na indignificação dos outros do outro lado da linha e os outros que procuram ser dignos em condições indignas.

É o caso do Museu da Maré, no Rio de Janeiro. Criaram um museu que, ao contrário de museus europeus, não é um museu de objetos roubados, é um museu de comunidade que agora vai ser legalizado. Isto lhes concede uma autoestima extraordinária. E, embora seja a favor das redes sociais com todos os problemas que elas criam, acho que esses museus têm que ser físicos para obrigar as pessoas a ir visitar a favela e não pensar que a favela é apenas um parque de criminosos que nada têm a dizer de útil para nossa sociedade. Penso que é esta complexidade que bom artista tem. Quando ele tem uma estética particularmente forte, é porque ela se formou a partir dos critérios que se definem do outro lado da linha; esse é aquele artista que não se vende realmente. Não é o melhor o que se vende ao entretenimento. É aquele que toma sua posição para denunciar a linha abissal e transformá-la numa fenda. Isto é, não é uma linha, é uma fenda de divisão. E eu procuro caminhar sobre essa fenda. Por vezes até alargá-la, mostrar a divisão que é, mas caminhar sobre ela, porque se vê a sociedade de um lado e se vê a do outro. E costumo dizer que os artistas são aquilo que em inglês chamam “cantilever”, que é uma viga de balanço, que é aquela viga que está presa apenas numa base e a outra base está solta. É o caso dos postes de iluminação. Tem uma base, pode ser uma parede em uma varanda e isto é uma viga que só tem um ponto de apoio. Este apoio está fixo nesse caso, mas no poste até pode ser direcionada. O artista pode caminhar na linha abissal, ver uma e ver outra, não se vender, mas ver o contraste que há entre as duas realidades. E portanto tem essa capacidade de ser quase um acrobata, digamos assim, por cima da linha abissal, mostrando exatamente aos seus que há um outro lado da linha, de justiça, de riqueza em vida, que lhes é roubada a eles. E ao mesmo tempo conscientiza sua população para que efetivamente lutem para que isso não se suceda. Esses são artistas públicos, de grande força. E eu conheço um dos rappers que mais estimo aqui no Brasil, que é o GOG, de Brasília, que é um homem já de geração mais velha dos rappers do Brasil, mas que fez um trabalho lutando. Faz com crianças, faz com que a partir de suas realidades consigam realmente denunciar a linha abissal e dar autoestima a suas comunidades. É claro que não podem superar a linha abissal, não é essa a sua missão. Para isso precisamos de uma revolução social.

Precisamos de uma luta anticapitalista, anticolonialista e antipatriarcal. Os artistas podem colaborar nessa arte, nesse processo, tal qual como os construtivistas russos pensaram que tinham um papel muito importante na Revolução, mas que sabemos que foi apenas importante num primeiro momento. Num momento em que ela se tornou traumática, com presos políticos, com políticos autoritários, os artistas foram para exílio ou tiveram que se adaptar e deixaram de ser criativos como a gente vê nas próprias sinfonias do Shostakovich como teve que ceder por outras opções stalinistas. Alguns foram mesmo, enfim, destruídos durante o processo. A arte não resolve os problemas do mundo, mas mostra o mundo simultaneamente mais feio porque mais dividido, de uma forma injusta e abissal, ao mesmo tempo em que mostra que há beleza do outro lado e que não é o mundo entre a civilização e a barbárie. É o mundo entre duas formas de viver. Uma cuja dignidade assenta na indignificação dos outros do outro lado da linha e os outros que procuram ser dignos em condições indignas. Eles também criam, também têm a sua arte. É esta a função da denúncia e de contribuição possível para uma luta de libertação. Penso que os artistas podem agir assim. Não digo todos, porque a grande parte se vende, digamos assim, e se entrega à indústria do entretenimento. Estes abandonaram as epistemologias do sul e correram para as epistemologias do norte.

Nós vemos nos últimos anos, em escala mundial, o reaparecimento do autoritarismo e do fascismo, e o recrudescimento em questões sociais que pareciam já em vias de pacificação na nossa vida política. Parece haver uma operação de nacionalismo homogeneizador de pensamento e de realidade, uma tentativa de resgatar uma realidade anterior, fictícia, ao negar as diferenças que existem efetivamente na sociedade. Esse discurso perpassa necessariamente a destruição do espaço artístico, que é por excelência um lugar de heterodoxia e de recusa à autoridade? De que forma é possível o artista operar uma resistência ativa a partir dessa tendência? O mero exercício dessa alteridade consegue suprir essa demanda?

Eu penso que é uma questão muito complexa porque nós sabemos que, efetivamente, a arte chegou a florescer em momentos antidemocráticos. Os artistas muitas vezes foram os únicos porta-vozes da ideia de uma alternativa de rebeldia, aproveitando exatamente a sua aura e a sua ideia de que eles, afinal, não mudam o mundo, portanto não ameaçam ninguém. Quando se vê uma Guernica, do Picasso, é uma denúncia brutal de todas as violências da guerra. E ela pode até ser cortejada por ditadores apesar de saberem que é uma condenação da ditadura, digamos assim, porque seu valor poético e pictórico, artístico, sobrepuja obviamente essas ressalvas. Mas é verdade que os conservadores, os adeptos dos fascismos e dos neofascismos, têm um componente disciplinar no momento. Todos os regimes autoritários o têm, o stalinismo também o teve. E isso se realiza quando se tenta pôr a criatividade poética e artística aos serviços de certos objetivos tidos como sendo os únicos legítimos. É exatamente como aqui [no Brasil], como neste momento o Escola Sem Partido, que quer tirar do uso da escola pública certos autores apenas porque suas ideias colidem com as ideias dominantes. Não é pra tirar a ideologia. Ideólogos são aqueles que procuram retirar esses autores. É porque não toleram as ideias diferentes, sejam do Karl Marx, sejam do Paulo Freire, sejam do José Saramago, sejam do Milton Santos. Portanto é realmente um disciplinário, uma disciplina autoritária, neofascista, que está a emergir como uma nova Inquisição. Esta inquisição obviamente tem um impacto direto naqueles que reproduzem a arte e, obviamente, as suas galerias vão ser influenciadas pelos artistas que podem ser mostrados ou não mostrados; nas livrarias, os livros que estão à mostra ou não podem estar. Nós já estamos a assistir às distribuidoras no Brasil que pedem que não lhes enviem livros desses ou daqueles autores, que são problemáticos. Portanto, nós estamos a assistir um censório. Agora, os produtores da arte, estes não se deixam intimidar. Eles fecham-se normalmente sobre si próprios, nos seus estúdios, nos seus gabinetes, e começam a dar asa a sua própria criatividade. Claro que muitas vezes são obrigados a mantê-las inéditas, porque não encontram quem as publique. Outros artistas são obrigados a fazer autocensura ou porque têm muito interesse em publicá-las ou porque sua arte é uma arte que está em meio público. E fazer autocensura é a coisa pior que um artista pode fazer. Portanto a ascensão do neofascismo é extremamente perigosa, sobretudo, porque está a surgir quase paradoxalmente sob uma forma democrática. Isto é, não é uma ditadura unitária, que ilumina de uma vez por todas o dissenso, prende e tortura os artistas, proíbe obras, faz o index imediatamente, proíbe a produção artística. Não. Os senhores [com a Lavoura] vão continuando, Caetano Veloso continua fazendo seus shows, Chico Buarque continua fazendo os seus. Mas cria-se, efetivamente, um clima de intimidação, um clima de disciplina, que vai afetar, sobretudo, os jovens artistas, que se sentem, obviamente, tentados a não produzir uma arte que confronte essa ordem, porque ela pode ser extremamente punitiva em relação a eles, e de alguma maneira se desviam para temas menos sensíveis, para problemas que podem ser menos objeto de atenção do censor. Eu penso que o fascismo, nesta sua nova forma que é extremamente insidiosa, está a limitar, obviamente, a criatividade artística. Nós já temos visto o que aconteceu com o Queermuseu. Este é um bom sinal de como a ideologia de uma parte da população, quando ela assume certa preponderância junto do poder, tende a liquidar a criação artística e pode transformá-la, obviamente, num objeto ou de propaganda ou pornográfico, e, como tal, deve ser deslegitimada, deve ser proibida. Portanto eu vejo com muita preocupação o Brasil deste momento, em que essa vertigem disciplinar possa estar a emergir e os seus impactos na arte em geral, quer seja aquela que é produzida do lado de cá da linha, na sociedade metropolitana, pelos artistas convencionais ou mais consagrados, quer seja aquela que os artistas que estão na quebrada, mais invisíveis e talvez mais lidos nesse momento. Esses artistas podem ser impactados e ter medo de que sua obra, por exemplo, seus grafites, sejam destruídos de um momento para outro. Isso obviamente nos desanima e já tem acontecido aqui em São Paulo.


Boaventura de Sousa Santos (Portugal, 1940) é Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick.