As influências de João Anzanello Carrascoza

Depoimento concedido a André Balbo, editor da Lavoura

Nas primeiras edições da Biblioteca de Babel conhecemos alguns livros considerados fundamentais, de modo geral, para a formação individual de nossos convidados. Na edição atual o leitor terá acesso a uma dimensão mais manifesta da influência literária: João Carrascoza não apenas reconhece a presença de autores em sua formação, como também evidencia alguns dos intertextos de seus principais livros.

Conhecido e celebrado em especial pelo domínio da forma breve, gênero em que é um dos mestres irrefutáveis da prosa brasileira contemporânea, Carrascoza conta que seus primeiros textos, influenciado por livros que leu na juventude, eram de poesia.

O autor de Elegia do irmão, publicado em abril pela Alfaguara, romance que cuida da perda e da ausência no contexto das relações familiares, arremata sua participação refletindo sobre a ideia de “famílias literárias”.


Vidas secas, de Graciliano Ramos

Uma maravilha em termos de linguagem e de temática. Graciliano nos conduz ao sensível por meio da palavra. Aos 7 e aos 40 é um diálogo total com Vidas secas. Eu vinha do conto e, quando fui escrever esse romance, não queria que ele acontecesse em um único tempo, então trabalhei com dois períodos: a primeira infância, época de encantamentos, quando nomeamos as coisas, e uma fase de maior maturidade. E fiz isso do mesmo modo que o Graciliano, do ponto de vista da forma: capítulos (ou episódios) curtos que funcionam como quadros isolados de sentimentos vividos e, claro, com amálgamas de um romance. E eles funcionam como episódios únicos, de fato, não é à toa que alguns capítulos desse romance estão em antologias de contos. Outro ponto de contato é o trabalho da linguagem: a escolha lexical e os não-ditos. Assim como em Vidas secas, em que a região natural de seca não é diretamente expressa, em Aos 7 e aos 40 as coisas são apresentadas pelo “não-apresentar”.

Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto

É um livro seminal. Como sabemos, neste poema o personagem a todo momento se depara com a morte e, ao final, no entanto, eclode uma vida (ainda que seja ela severina). Foi o ponto de partida do que fiz em Caderno de um ausente. Ou melhor, na verdade se trata de um Morte e vida ao revés, porque, no Caderno, conto a história de um homem mais velho que está dando as boas-vindas para a filha que nasce – ou seja, a vida já está presente – e vai terminar com uma morte, ainda que possa ser considerada simbólica.

As impurezas do branco, de Carlos Drummond de Andrade

Eu estava em Cravinhos [interior de SP], minha cidade natal, e lia muita poesia, mas de forma desordenada, sem muito conhecimento de escolas literárias. Estava acostumado a versos rimados, lia Álvares de Azevedo, Castro Alves… Então caiu na minha mão esse que foi meu primeiro livro modernista. O primeiro poema do livro se chama “Ao Deus Kom Unik Assão”; coincidência ou não, na época eu estava prestando vestibular para a ECA (Escola de Comunicação e Artes da USP) – onde estamos agora – e virei professor de comunicação. As impurezas fala do dia a dia das coisas, dos signos, até nos faz refletir sobre a temperatura, a hora que acordamos; uma espécie de compreensão do ser humano por meio dos signos de sua contemporaneidade. Sem falar nos versos brancos, livres, não-rimados. Eu lia os poemas e me perguntava: “vale fazer poesia assim?”. Drummond é um grande intelectual da literatura do século XX, e As impurezas do branco foi o livro que me abriu para outros poetas do cotidiano e do lirismo. Como Bandeira.

O ritmo dissoluto, de Manuel Bandeira

Embora fosse escrever e me tornar conhecido pela prosa, comecei escrevendo poesia quando ainda estava em Cravinhos. É algo comum a muitos escritores de prosa longa, Guimarães, por exemplo [com Magma, de 1936, publicado postumamente, em 1997]. Começa com uma inquietação da existência, uma reflexão sobre o estar-no-mundo, disso decorre um trabalho de extravasamento do eu. Foi nesse momento que li O ritmo do dissoluto, um livro que era modernista mas tinha traços simbolistas. São poemas em que Bandeira está redescobrindo o país e o seu tempo a partir da sensibilidade das pequenas coisas do dia a dia. Essa sensibilidade passou para minha prosa – a poesia é um dos terrenos de diálogo dos meus contos, principalmente. Minhas histórias se arregimentam a partir de coisas menores; o que se está vivendo, as relações humanas mais próximas, sejam de afeto, sejam de desafeto.

Lavoura arcaica, de Raduan Nassar

Quando li a primeira vez ainda estava no interior. Depois li várias vezes. Se sobre Vidas secas é possível dizer que cada capítulo pode ser lido como um conto, em Lavoura arcaica isso acontece de modo intenso. É claro, estamos falando de um romance que não tem episódios sempre isolados, mas o que quero dizer é que a tensão de cada capítulo tem a força que deve ter um conto. Além disso, é uma prosa que joga com o elemento lírico – ou um “paralelepípedo lírico”, como o próprio Raduan denominou. Ele manobra a linguagem de uma forma intensa. Faz jogos de metáfora, trabalha com o sabor e a musicalidade das palavras, sempre arcaicas; utiliza formações gramaticais e regências que lembram mais o português de Portugal do que o do nosso modernismo; fragmenta a narrativa, deixa de lado a linha do tempo convencional do romance e parte para o fluxo de consciência. Sem falar, é claro, na força do conflito da história.

Enquanto agonizo, de William Faulkner

Hoje não é mais uma novidade do ponto de vista temático, mas é uma história que me tocou. Uma mulher está à beira da morte e a família começa a trabalhar para a construção de seu caixão. São múltiplos personagens e cada um deles narra o que está fazendo enquanto a mãe agoniza, como uma espécie de caleidoscópio narrativo, alternando fluxos de consciência, com flashforward e flashback. É um livro com bastante experimentação e que me permitiu perceber que era possível experimentar não só no romance, mas também no conto. Depois fui buscar romances de alto fôlego de Faulker e virei seu cultor, descobrindo inclusive livros que trabalham com o tema das famílias e de várias gerações, como o Luzes de agosto, que influenciaram minha obra. E talvez venha daí a ideia de famílias literárias: gostamos de um autor e nos aprofundamos na obra dele; escrevemos dialogando com a obra desse autor e, depois, nossos leitores acabam gostando de entrar naquela atmosfera sensitiva e vão buscar aquele autor. Assim se cria uma família, que se constrói abrindo livros e tradições, compondo uma costura de sensibilidades literárias.


João Anzanello Carrascoza nasceu em Cravinhos (SP). É autor dos romances Caderno de um ausente, Menina escrevendo com o pai e A pele da terra, que compõem a Trilogia do Adeus, e Aos 7 e aos 40, além dos livros de contos Aquela água toda e Diário das coincidências, entre outros.