Editorial

Entre atos políticos e purezas postiças

A Lavoura chega à 5ª edição. Do primeiro ensaio ao momento corrente, o número passado foi uma baliza significativa, em virtude de uma reorientação de caminhos decorrente da adoção do sistema de curadorias para as seções de ficção e de poesia. Essa escolha tem raízes múltiplas, cabendo dizer que não é mais possível, sob a regência do argumento da “qualidade literária” – uma construção tão vaga quanto eivada de impasses estruturais – depositar escolhas artísticas e editoriais na aposta de um crivo construído a partir de pressupostos canônicos-normativos que, ainda que busquemos reconstruí-los, são aqueles que efetivamente formaram nosso próprio senso estético e político-cultural sobre a ideia do que é ou pode ser objeto de reconstrução.

O sistema de curadorias, se bem utilizado, ou seja, se não apenas um esforço retórico camuflado pela delegação, permite um avanço mínimo para rearranjar os alicerces da produção artística e equilibrar as pulsões criativas e críticas, revolvendo na linguagem a pluralidade de vozes que lhe constitui. Uma das qualidades da grandeza, escreve Virginia Woolf no ensaio “The Love of Reading” (1931), consiste em deixar que o céu e a terra e a natureza se conformem à visão que lhes é própria. Para a escritora, a leitura é um ato complexo e o leitor deve primeiro sentar no banco dos réus para depois ocupar a poltrona do juiz.

Essa reflexão deslocada no tempo pode parecer problemática, por conta das conotações éticas da ideia de julgar, à luz do que propõe Leyla Perrone-Moisés em Texto, Crítica, Escritura. Mas, aqui – e nos parece justo dizer isto quando se trata de Virginia Woolf –, tomemos a dicotomia juiz-réu como metáfora, nela se reunindo medidas como a compreensão, a comparação, a classificação e a avaliação. Ressalvas feitas, a constatação que movimenta este texto é a de que predomina, no meio literário do nosso tempo, a figura solitária do juiz.

De certo modo essas cavilações guardam relação com algumas rusgas que se evidenciaram no primeiro semestre. São simbólicos, entre outros, o artigo de Mariella Augusta Masagão, publicado em abril na Folha de S.Paulo, que atribui à poesia brasileira contemporânea a pecha de “hermética e sisuda” e ignora, em seu recorte panorâmico, a produção de autores deslocados dos grandes centros urbanos do eixo sul-sudeste, e o painel de convidados da Oficina Irritada, do Instituto Moreira Salles, que prometia oferecer encontros de “diferentes gerações, percursos diversos e seus modos singulares de ver e escrever” destinados a “responder às questões estéticas, históricas, 6 7 éticas e afetivas do presente” sem, contudo, ter entre seus convidados uma única pessoa negra.

A ideia não é rescaldar tais eventos ou excitar os afetos da época, senão buscar compreender seu denominador comum e repensar a tônica das discussões no meio literário que, via de regra, opõem dois lugares estéreis, a saber: uma parcela que se diz cansada do “politicamente correto” na literatura e aqueles que, seja como forma de reação aos primeiros, seja motivados pelos tempos autoritários, reivindicam o brocardo “escrever é um ato político” sem um mínimo de referencialidade para conceber o grau dessa afirmação.

Entre os primeiros, vigora o discurso de que deve importar à literatura apenas o que é “bom” – colocam-se como juízes –, crença no mínimo pueril, porquanto desconsidera que grande parte do que reputamos belo assim o é tão só em função dos expedientes canônicos que forjaram as concepções dominantes de qualidade literária. Já entre os últimos prevalece o entendimento de que escrever é se posicionar diante das agruras do mundo, denunciando-as, não raro com referências explícitas ao cenário político do tempo da escrita. Se erram aqueles ao confiar na “pureza” dos cânones, supondo que o conceito de “boa literatura” é apolítico, erram estes ao compreender a política em seu sentido superficial, confundindo-a com o engajamento em torno de questões sociais urgentes. Nos dois casos, portanto, entendemos que o equívoco está numa incompreensão da relação entre estética e política.

A estética possui uma dimensão política em sentido amplo, isto é, a política como o lugar de excelência da palavra e sua espessura de convencimento dessacralizado; um espaço de exercício da linguagem em que a verticalidade dos sentidos – ditados por Deus, pelo Estado, pelos costumes, até mesmo pelos dicionários – é derrubada para dar vaga à disputa de narrativas que conforma o debate público. Nenhuma novidade, é claro; só falta entender quando e por que abandonamos esse conceito básico.

A literatura é política em essência não porque “a arte desafia o poder” – ou qualquer lugar-comum que o valha – mas porque sua compleição estética inaugura um território em que é possível escutar o que apenas era ruído, colocando em comunicação regimes separados de expressão, para falar como Rancière. Ou ainda, para citar um conservador como Gadamer, a literatura, compreendida como expressão da linguagem, não é um produto da consciência individual, antes pertence à realidade do “nós”, existindo num espaço intersubjetivo onde o mundo se descortina.

No centro desta edição está uma entrevista com Boaventura de Sousa Santos, professor catedrático da Universidade de Coimbra, em que reflete sobre a formação do cânone ocidental e a suposta universalidade dos princípios que o conformam, repetindo a lógica de dominação que cria uma “linha abissal” que divide nações e grupos de indivíduos.

Em seu pensamento sociológico, Boaventura propõe que devemos aprender que existe o Sul, aprender a ir para o Sul e aprender a partir do Sul e com o Sul. Não é tarefa óbvia, mas esperamos tê-la como bússola nesta e noutras edições. Boa leitura.