“Conforme vamos nos aproximando”, crítica de Luisa Tieppo

Os anos, romance autobiográfico de Annie Ernaux, foi publicado na França em 2008 pela Gallimard e chega ao Brasil este mês [junho de 2019], numa caprichada edição da Três Estrelas. Tive a oportunidade de estudar este livro durante meu intercâmbio em 2014. Na ementa da disciplina Littérature et société, do departamento de literatura da Sorbonne, ao lado nomes como o de Jean Paul Sartre e Pierre Drieu La Rochelle, havia uma única mulher: Annie Ernaux.

Embora pouco tenha se ouvido falar da escritora no Brasil até agora, um único livro dela (Paixão simples) foi publicado pela editora Objetiva em 1992. Recentemente, Annie Ernaux apareceu na lista do Man Booker Prize, com Os anos, ficando entre os finalistas do prêmio.

Os anos retrata com maestria as transformações sociais e históricas ocorridas principalmente na França entre os anos 1940 e 2000. Porém, para muito além disso, o romance reconstrói a vida de uma mulher de classe média – ou de uma geração delas – a partir de acontecimentos, embates, dúvidas e decisões que qualquer uma passou, pode passar ou facilmente pode reconhecer: a obtenção de um diploma universitário, a constante preocupação com as convenções sociais, a relação com a família, o nascimento de filhos, um casamento, um divórcio, a morte dos pais.

Uma das técnicas usadas pela autora para escrever dessa maneira, e que acabou por fazer com que Os anos tenha sido classificado como uma “autobiografia pessoal e impessoal”, é não usar o pronome “je”. Ela fala de si mesma, certamente, mas, provavelmente porque sabe não ter sido a única mulher que vivenciou os fatos ali narrados, as opções de enfoque narrativo são pelo pronome impessoal “on”, o “elle”, o “nous” e, com menor frequência, o “ils”.

O livro começa com a enumeração de frases breves, imagens, lembranças, letras de músicas, slogans de comerciais, reflexões sobre a passagem do tempo e da vida apresentados de forma espaçada e – aparentemente – sem ligação entre si, compondo um painel, como lembranças que vem à mente, como anotações. Com uma prosa poética que poucos escritores conseguem compor, a impressão que essa enumeração do início causa é justamente a de alguém que se esforça para relembrar meses, anos, décadas vividos. Há, ainda, descrições de fotos, que não estão reproduzidas, antes do início de cada “capítulo” (ou talvez seja melhor dizer “parte”) do livro – como uma forma de introduzir o leitor à nova fase da vida. Nesses trechos, o pronome escolhido pela autora para descrever as fotografias é o “elle”, talvez para nos apresentar a imagem dela mesma, objetivada pela passagem do tempo. Conforme vamos nos aproximando dos dias atuais, as fotos são substituídas por vídeos, que também antecipam os acontecimentos das páginas seguintes. É como se estivéssemos, leitores e autora, folheando um antigo álbum de fotografias.

Como já mencionado, o recorte temporal de Os anos se dá entre os anos 1940 e os 2000, com todas as mudanças sociais, tecnológicas e pessoais que ocorreram desde então. Do ponto de vista social, destaca-se que a maior parte da história tem como pano de fundo uma vida interiorana. Por isso, Annie Ernaux nos apresenta a uma trajetória feminina que se desenrola longe de Paris.

Um exemplo excelente disso está na descrição de Ernaux dos acontecimentos de Maio de 68, que é feita a partir do ponto de vista de quem acompanhou tudo de longe, da cidade do interior da Normandia onde a autora (e, por consequência, sua personagem) vivia e lecionava. Ela já não era tão jovem à época, então nos dá uma interpretação menos romantizada do evento. Annie Ernaux nos mostra algumas nuances que permeavam a referida “data histórica” para além das cenas dos jovens parisienses, com os rostos cobertos, apedrejando os policiais que são, hoje, as imagens que habitam nosso imaginário: as ruas e as estações de trem desertas, a falta de jornais nas bancas, o medo de ficar também sem dinheiro e a correria para sacar tudo das contas e, pela memória recente das Guerras, o medo de faltar comida e – os mercados lotados por pessoas com os carrinhos de compras cheios até o topo. Há, ainda, a descrição belíssima de uma espera e (por que não?) de uma esperança por parte daqueles que eram jovens (ou nem tanto) durante Maio de 68, por um novo evento histórico que fosse equivalente a ele do ponto de vista revolucionário. A ansiedade pela reaparição desse momento surge algumas vezes, até ir, pouco a pouco, se evanescendo, como se evanesce o apreço por um programa de rádio, um prato da moda, uma revista, um destino turístico…

Aliás, o desenvolvimento da “sociedade de consumo” e essa veloz substituição de preferências é mais um elemento que atravessa toda a trama de Os anos. Acompanhamos como surgiram, pouco a pouco, objetos que tinham a função de facilitar a vida das pessoas, poupando seu tempo, e como a publicidade (as referências a comerciais e a slogans não são poucas) foi ganhando espaço dentro do cotidiano da população. Para além dos objetos, há a evolução dos lugares destinados ao consumo: a presença cada vez mais forte das quinzenas de liquidação nas lojas (que começam a fazer parte do calendário anual das pessoas e a pautar sua vida com a mesma força que os feriados cristãos, até tornarem-se mais importantes que eles); a evolução do comércio (que, para quem cresceu na campagne, é ainda mais evidente), que passa de um cultivo familiar dos alimentos, segundo as estações do ano, para sua compra em grandes supermercados e suas prateleiras abarrotadas, cheias de variedade, e que são cada vez mais e mais presentes nas grandes capitais; e, finalmente, a relação da população com essas evoluções, construída com base na linguagem publicitária, que fazia parecer que, ao comprar a ideia desse novo modelo de comércio, o consumidor ou consumidora estava caminhando com a tecnologia e participando ativamente de um “mundo moderno”. O trecho em que Ernaux relata, por exemplo, a progressiva substituição de produtos feitos a partir de matérias-primas como o ferro por produtos de plástico ilustra essa mudança. Todas elas, aliás, são narradas em contraste com a infância sem luxos da narradora, à sombra da Guerra, da reconstrução da Europa e dos racionamentos.

Outro elemento importante do livro encontra-se na elaborada descrição das transformações ocorridas na vida sexual das mulheres ao longo desses anos. Os tabus da adolescência nos anos 1950, pautada por uma forte presença dos valores morais religiosos mas que, dependendo de círculo social e econômico a que pertencesse a mulher, podia evoluir para uma atitude mais combativa em relação a isso.

Em Os anos, apesar de uma postura considerada fora do padrão esperado do gênero feminino, nos deparamos com uma mulher que recusa-se a casar-se logo após o fim da escola (a passagem em que aparece a cena de uma Primeira Comunhão, por volta dos anos 1950, onde há um comentário – ou uma previsão – de que, divididos em casais, os meninos e meninas ali presentes, naqueles trajes, já se pareciam com os pares de noivos que certamente seriam dali a poucos anos resume muito bem a interpretação da escritora diante desse protocolo) e que, ainda assim, segue o que se esperava que fosse feito dela: ela também se casa (não virgem, mesmo correndo o risco de engravidar) e constitui uma família ainda jovem, tornando-se mais uma dona de casa dependente de todos os produtos inovadores e indispensáveis. Esse roteiro acontecia com a maior parte das mulheres, mesmo com a invenção da pílula anticoncepcional (que, mesmo cientes de sua comercialização, mulher nenhuma tinha coragem de pedir a tal da pílula ao médico e ele tampouco a receitava – principalmente para as casadas, já que não fazia sentido). Depois, após o divórcio, quando os filhos já estão grandes, o livro mostra a redescoberta do sexo casual, dos namoros despreocupados com homens mais novos, sem o medo de gravidez e sem a pressão por um casamento, que assombravam sua juventude.

É sempre admirável quando uma mulher decide colocar no papel o seu ponto de vista da vida, e quando consegue fazer isso da maneira como Annie Ernaux faz, é ainda mais interessante. Devido aos motivos que listei anteriormente, Os anos é definido pela crítica francesa como uma “autobiografia coletiva”.

O livro nos mostra também como, apesar das inevitáveis mudanças e melhorias, do ponto de vista pessoal, a vida é também repetição: Annie descreve a lenta transição da forma como lidamos com algo corriqueiro, como uma refeição em família, em várias fases da vida: quando somos filhos (crianças ou adolescentes), passamos a adultos (recém-casados, jovens pais) e, finalmente, idosos (pais de adultos, avós). Os assuntos comentados à mesa mudam, as pessoas presentes e as receitas da moda também, mas as relações de autoridade e opiniões de um membro da família em relação ao outro dificilmente se transformam.

Em Os anos, acompanhamos, simplesmente, a passagem do tempo: o ritmo da vida cotidiana, regular, com suas pequenas conquistas, em meio aos grandes acontecimentos históricos, que aparecem em menções a nomes de intelectuais, governos, períodos e eventos, por vezes parecendo até desimportantes em meio à rotina, de uma forma que uma coisa acaba se diluindo na outra.

Ler Os anos é como ter acesso a um diário, mas não de uma só pessoa. É um diário de toda uma geração, que começa com o pós-guerra e passa por diferentes acontecimentos importantes para o mundo, como o período de Gaulle, a guerra da Argélia, Maio de 68, a era Mitterrand, a crise migratória na Europa, o 11 de Setembro etc., permeadas por uma visão crítica, que é essa lenta mas constante mudança de juízo das personagens (e também de todos nós) em relação à vida pessoal e coletiva, conforme o presente vai virando passado.

Título original: Les Années
Título: Os anos

Autora: Annie Ernaux
Editora: Três Estrelas
232 pp.
R$ 52,90


Luisa Tieppo é formada em Letras (português/francês) pela FFLCH-USP, editora e trabalha com livros desde 2015.