“Da vaca”, conto de Cristina Meirelles

Só me chamam com os olhos, sempre em silêncio, entendo assim mesmo, vou andando na ponta dos pés, sem barulho, o piso antigo de madeira estalando, vou devagar, espaçando os ruídos, a cada passo uma respiração, os olhos no chão, os meus, concentrados em direção às seis da manhã, às canecas de leite fresco espumado, três sobre a mesa com toalha sempre caprichada, uma para cada irmão. A mãe não diz nada, supervisiona com os olhos, conta os goles, confere o relógio pendurado na parede lateral, e sai com ar de missão cumprida, corremos para a pia de porcelana branca com torneira dourada enferrujada, cuspimos o que restou nas bocas, derramamos os restos das canecas, as mãos, as seis, ajudam o fluxo da água a disfarçar os pingos espumados de leite nos cantos, no ralo, no dourado, dia seguinte também e no outro e no outro, seis da manhã seguro a ânsia antecipada enquanto me chamam com os olhos e um meneio de cabeça indicando as canecas, sem usar meu nome composto, porque tenho que ter nome composto, que ideia, queria chamar Maria, Ana, qualquer coisa que fosse só uma, mas não, a pompa do nome composto que ninguém usa, porque só me chamam com os olhos e meneios de cabeça, menos a professora que fala os meus dois nomes inteiros, não sei, mas soa como anúncio de sentença de morte, imagino logo a fila das vacas, esperando que lhes cortem as cabeças. Se chama, fico em pé rápido ao lado da carteira grudada no chão pelo pé de ferro, estou no meio da fileira, na garganta ainda e sempre o vômito talhado do cheiro do leite das seis, de hoje, ontem e anteontem, e de quando fomos logo antes no curral das vacas, exibindo pras gentes das cidades a alegria e maravilha de se tomar leite ordenhado na hora, sorrindo nos nossos banquinhos, o nariz bem perto do cheiro de estrume, mijo de vaca e leite espumado, as mãos sabidas direcionando os jatos para o balde de metal com cabo de madeira, onde os dedos se encaixam direitinho, que beleza dizem, leite espumado também é nome composto penso enjoada, ainda assim lanço sorrisos para eles, em visita, estranhas gentes que olham para árvore como se fosse um altar de capela e soltam gritinhos para o piso repleto de manga madura caída do pé, mesmo a coquinho, que é doce, mas miúda.

Sentamos dois a dois, eu e a Vera do meu lado, sortuda com o nome Vera e só, menos os pequenos das carteiras da frente, ainda no primeiro ano, que sentam em três, ninguém gosta de ficar no meio, porque não dá para levantar rápido quando a professora solta sentença de morte, e eu, a mãe diz, já estou há bastante tempo na escola, e fala meu nome completo quando se trata de escola. Menos agora, porque ouvimos o barulho, tão alto, quase do céu, parecendo barulho de abelha caindo de tonta dentro de uma corneta, daí levantamos todos de uma vez, sem a professora chamar, que agora grita, em  letra maiúscula, que fala com maiúsculas e minúsculas e acentuando, e olhando fundo, para ver se entendemos, e entendemos, mas não o barulho, demoro uns instantes olhando para ela, pergunto com os olhos, de tanta vergonha de não saber, fico transparente, tanto que nem mesmo eu me vejo, que por aqui, bem dizer, todos os barulhos são conhecidos, os de dentro e os de fora, de pé e de terra, de gente e de bicho, de árvore e de céu, de cá e de lá, mas não veio de cá, que é onde a escola fica, lugar de coisa séria, ninguém ri ou fala, só respondemos, menos a professora, que não só pode, mas trabalha de falar, o que não deve ser difícil, porque tudo o que tem para saber já está arrumadinho em algum lugar, nos livros, deve ser nos livros, assim, é o mesmo, falar o que está nos livros, alimentar os porcos, cortar cacho de banana pronto no pé, ser professora, é meio igual, toda manhã a mesma coisa. De bonito tem o sino, de cobre enfeitado, dá para ouvir até do caramanchão das margaridas, onde se pode pensar, que também é um trabalho, e, uma vez batido o sino, soltos na terra vermelha, podemos viver e comer carambolas, então o barulho não é do sino, porque ainda não teve o lanche, o sino não bateu, o caldeirão de alumínio ainda fechado, arroz embaixo, feijão por cima, couve, pé de frango, a tampa presa com um elástico branco que tem um nó, mas não sou eu quem vai comer pé de frango, talvez seja o do Frederico, sempre pode ser o Frederico, que não dei a ele nome composto, ainda mais para um frango, João Frederico, Luís Frederico, Frederico José, imagina.

Começa a correria, a professora perde um pé de sapato de verniz, que usa mesmo no barro para dizer que é da cidade, onde ficam o padre, o médico e os que escrevem livros, e os maiores são os primeiros a correr porta afora procurando o que é o barulho, depois os do meio, no fim os pequenos, seguindo a ordem porque de todo jeito é hora da escola, eu continuo transparente ao lado da professora sem seu pé do sapato gritando em maiúscula, os outros correm assustados, que pode  ter caído o morro com a colônia em cima do lado de lá, uma casinha branca caiada do lado de lá, o vale separando cá e lá, a varanda da casa de pedra escondida nas árvores de cá,  o portão de ferro preto, a cerca, o pé de primavera, o muro com pedras uma em cima da outra, o sangue dos escravos nos muros, contou o pai, a mula sem cabeça em pessoa aparecendo fora da hora, sempre meia noite, a enxada no pé de alguém, pior, o pai de alguém esmagado no trator, como foi com o pai da Vera, que morreu, não corro, que é de boa educação que as meninas não corram, a avó sempre fala, nem falar alto, nem sentar de perna aberta como a Vera pode, sortuda.

Olhamos, eu e a professora no final da correria, e aparece a fumaça, vem do monte das vacas,  vou praticando matemática, que sou rápida, doze, treze…vinte e um pontinhos no pasto, vinte e uma vacas ruminantes, quando envelhecer planejo ser uma vaca, daquelas senhoras pregadas no pasto, cabeça baixa, ruminando capim, imóveis, grudadinhas no morro, branquinhas de tanta paz, mas agora sou transparente, e falta uma, mais de perto dá pra ver, o canteiro de hortênsias esmagado até o pé do monte, cadê a Claudia Maria, a malhada, recém parida, a avó que deu o nome, o pai chama de malhada recém parida mesmo, e o bezerro da Claudia Maria também procura a mãe, e todo mundo vê o carro amassado de ponta cabeça saindo fumaça, o povo para de carpir, reza alto, ave maria cheia de graça, a porta abre e saem com cara de meia noite, marido, mulher, as crianças, olham para os braços, pernas, pescoço, ajeitam a roupa de cidade, todos bem, e a Claudia Maria mugindo lá embaixo, procurando o bezerro, pelo menos penso isso, daí o trator tira o carro esmigalhado de cima dela, que levanta e começa a mugir alto, e os pequenos são os primeiros que batem palmas, depois os do meio riem, os do final fazem graça, porque a vaca sozinha aparou o carro, salvou a família inteira com seu corpo malhado, mas na argola do seu nariz, e pescoço, ficam presas as coisas da mala dos visitantes, um colar colorido, um sapato rosa, um casaco de homem, uma pasta de trabalho, um vestido quadriculado, um lenço de pescoço, ela sacode a cabeça, tenta se livrar, desanda a mugir em letra maiúscula, ameaçando chifrar quem chegasse perto, ninguém se importa, tão engraçada, e tão enfeitada que passa a chamar Carlota Joaquina, a avó teve a ideia.

O pai convida o homem, a mulher e as crianças para almoço na casa da varanda de pedra do lado de cá, que explicassem por que o carro estava no morro, acabassem com o diz que me disse no armazém, gente estranha, comem comida sem saber de onde veio, aqui não, a couve é da horta do pai do Mário, o feijão da Dona Nina, o arroz do armazém do Ari, o frango, tomara não seja o Frederico, a linguiça do porco que guinchou até a morte, o doce de leite, eles já sabem, roubado do bezerro da Carlota Joaquina, que agora para em frente das escadas de pedra, irritada, se achando cão de guarda, exibindo o colar, brava, como se badalando um sino, enquanto a avó, tristonha, pensa nos seus colares, hoje em dia empenhados, todos, na caixa econômica federal.  A professora não quis vir, antes, passeia os olhos entre a varanda da casa de pedra e casinhas do lado de lá, o vale no meio, onde está minha transparência, que sou meio de cá querendo ser de lá, onde tem criança e música e travesseiro feito em casa, saber o que faz a Vera com os meninos atrás das bananeiras, depois ficam chamando Vera a Vaca, sentir sopro na nuca, ventar, tirar esse enjoo, rezar novena de propósito. Para espanto, Carlota Joaquina não para de mugir, parece ladainha, não gosta de gente de cidade, intrusos, me encara desafiadora, é que um dia vou pendurar colares, ler livros sem estragar os olhos na luz da vela, ter sapato de verniz, casar com um funcionário do banco do brasil ou com um juiz de direito que é o mais seguro, discutiam as avós, tomar leite em pó sem espuma, usar um nome só, pode ser também uma pasta de couro, não de vaca, esfregar essa terra da pele, sangrar, conquistar a cidade, ficar pregada nas calçadas, esse cá e lá ruminando em mim.


Cristina Meirelles mora em São Paulo. Socióloga, atua na área social há mais de 20 anos. Publicou diversos artigos e pesquisas com a sistematização das experiências dos atores sociais. Sempre apaixonada pela literatura, atualmente faz parte de um grupo de produção literária, e vem escrevendo suas histórias.