“Ele não deixa o sol acabar quando fecha os olhos”, conto de Raimundo Neto

Tinha certeza que sobreviveríamos de mãos dadas. Foi difícil chegar até aqui. Elas nunca foram vazias, sempre tínhamos muito que levar conosco, o peso das casas nas quais não fomos bem-vindos ao nascermos pela segunda vez. As portas se abriram, os olhos se agitaram e aprendemos a viver fora delas desde os dozes anos. Olhávamos homens de mãos grudadas e dizíamos Que medo Que nojo Quem nos dera. Diziam para nós o quanto era nojento apavorante asqueroso. Acreditamos naquelas quedas. Até vivermos fora do que nos disseram sobre desejo, nojo e pavor.

Mas acreditamos que, quando enfrentássemos o medo das mãos abraçadas, sobreviveríamos. Primeiro aprendemos escondidos que beijos se criam em volúpia e repulsa na adolescência. Víamos os pelos desabrochando e era como lamber um espelho toda vez que nossas bocas engoliam outros corpos.

Sei que estou contando como se ainda fôssemos nós, e dói. Você não vai mais contar essa história comigo. E ninguém tem tempo para ouvir sobre o que fomos.

Eu acordava às cinco da manhã, sacodia o sol batendo palma, todos os dias. A ideia de que eu acordava o sol não é apenas delirante, é um pouco ridícula. Mas quando eu disse que morreria esfaqueado, tenho certeza, numa cidade grande assim que ouvisse Eu Te Amo pela primeira vez, você me chamou de delirante, ridícula ideia, a fala não parou de tremer as cordas amarradas a teu tom sensato, e choro. Você acreditava que viveríamos alguma eternidade.

Quando te conheci foi um pouco de delírio apossado na língua e me fez não querer para de falar contigo, chorar e lamber o sol que você trazia no corpo, aquilo aprendi a acordar todos os dias.

Eu sabia escrever tudo que a nova casa aprendida queria dizer. Eu não conseguia mesmo era falar para todo mundo o que nos tornamos. Foi assim com nossas mãos: morria de desejo de deixar os dedos sem segredo algum pousados sobre ti, na rua, em qualquer lugar. Tentamos algumas vezes e desistimos: havia sempre um grito de boca e muitos olhos, cotovelos cutucando nosso desconforto, e pés arrastando caminhos trocados para nós, suspiros e lábios torcidos. Era sempre mais longo o caminho das mãos até o nosso afeto. Aquilo que fazíamos com os olhos, balbuciando uma demonstração escancaradamente secreta de carinho, e um de nós sempre chorava, foi o máximo que conseguimos sobre o amor.

Até aquele dia, depois do casamento, as alianças sussurravam como nós um compromisso aprendido recente, a falar um pouco mais alto, quando nos demos as mãos e pensamos na hora do amor rendido Tem muita gente aqui e nada de grave vai acontecer.

Aconteceu.

Dois caras carrancudos, um muito mais novo e outro muito mais macho, uma camisa brasil-família-e-ordem, abriram os braços e puxaram de dentro do grito uma faca (essas facas berrantes verduras-legumes comum na nossa cozinha sempre limpa), gritou bicha tão alto que fez todas as pessoas passantes dormirem sua decência, gritou mais alto, segurei tua mão, tremi os pés, tenho certeza que nossa casa novinha tremeu na raiz; não conseguimos fazer mais nada além de gritar bicha sim. Íamos fazer o quê?, quando o homem abriu a faca no teu peito, depois no meu braço, e não larguei tua mão, vi tua coragem morrendo de medo no fundo da ferida, eu vi teu choro confuso misturado com a raiva, escorrendo. O homem mais monstro gritou Brasil e alguma coisa e correu. O outro, o mais novo, riu. Acho que foi a primeira vez na vida, e na morte, que ele viu sangue. Eu também. Nunca tinha visto ninguém que aprendi a amar sangrar ao mesmo tempo. Nunca achei possível um amor sangrar tanto. Não era para ser assim. E parece que foi ontem.

Ando na rua com a mão vazia da tua. A casa, a nossa, acabou um pouco. Carrego o que restou dela nessa falta tremida entre os dedos. Não posso ver um amor assim como o nosso na rua que chego pertinho e balbucio Cuidado, meninos, tem amor que morre assim.

Me chamam de doido agora. Bicha louca. Mas já me chamavam quando eu dizia que ia encontrar um homem assim como você sem a parte da morte e do sangue, em que você morre vazando.

Escrevo assim como se fôssemos dois para acreditar que também posso morrer a qualquer hora. Em que momento tua falta passou a ser nós?

Quem vai acordar o sol agora, Plínio?


Raimundo Neto é escritor e psicólogo. Venceu o Prêmio Biblioteca do Paraná de Literatura 2018, com o livro de contos Todo esse amor que inventamos para nós.