“improtelo”, forma breve de carolina quintella

Arqueada, desformada por gravidades – ela quasímoda – com ares de quem há muito vinha sendo, ainda dava de ver os dentes simpáticos a quem passasse. Espelhada no apoio da bengala carcomida, com passos leves, flutuantes sobre o fluido do mundo, desenrolava-se de si, desapressada, inadiadora. Descontornanda, dava linha ao próximo transeunte, com o que esbarrasse pelas redondezas.

Dona Improtelo, como fio que se enovelasse, tantas seguidas voltas dera na praça, num andar redondo de partícipe das grandes obras universais. Caminhou desviante dos vultos e de tudo o que era incerto, numa valsa entre dois ou mais mundos? Repassava o quanto podia, muito em mímicas, porque fanha, sem receita nem poção pirlimpimpim. Distribuía tudo o que tinha, vivências ou inventos e, de vez em quando, praticava sumiços, gostava de se camuflar nas gentes, na natureza.

Deixava todo mundo assim na dúvida de quem era ela e de onde estava. Se numa conversa falavam fundo, cortado e baixo e, por cima, ainda olhavam vagante para o horizonte, com sorriso velado, beltrano perguntava: Improtelo, é a senhora? Ela, figura, quase uma lenda, não fosse real. E a roda de prosa se deitava num riso debochado.

Mas muita muita coisa dela ninguém não sabia. Onde morava, o que comia, por que sumia, se era gente ou só presença que se via, caminhante, de pés descalços e barrentos e o traje, simples, perfeitamente costurado se notava. E notavam a Dona porque falava muito, mas nada nunca sobre si. Improtelo gostava dos causos, de contar os causos, não se sabe se da vida ou se por ela inventados.

Contados uns, tachavam-na a louca. Jurou, certa vez, que viu as bivitelinas bandeiras, em pontos distintos da praça, e nada sobre isso mais urgia argumentar. De tantas rodantes miradas – dizia – as vira sempre diferentes, inenganadoras, mas sempre iguais. Falou nisto uma só vez. E a estória sumiu da boca. Todo mundo lembra, encabreado, olhando as bandeiras ainda postas, levantadas e delgadas, na praça. Assim era, também, o conto de outros causos: nenhum nunca se repetia. Mas o silêncio que os precedia e sucedia fazia deles a réplica de Improtelo: flutuantes, descalços, com tom de Verdade, de Senhoras. E o quê que havia nisso tudo fazia a gente querer recontá-los também, entoar as estórias e sentir na boca a palavra dos causos que vinham, aqueles contados. Todo mundo quer ter algum poder, alguma magia, alguma alegria, alguma loucura.

Logo, e de repente, todos contavam e recontavam o que era irrepetido por ela. Palavra de Improtelo é.

Tudo de Dona era sempre muito inédito e tinha uma magia, uma alegria nos dentes, que queria apossar de toda a gente, ou a gente dela. Nada surreal, ostentoso, maravilhoso, mas, antes, tão simples e axial, que, então, absoluto. Era um veio comum, um dizer lacunado, fanho, repleto de um nada que é tudo.

E ela sempre estava entre toda a gente, quando vista – nunca só e nunca muito acompanhada – mas principalmente onde há estrago, onde o pau come e o cão se esforça para morder o rabo. Porque sorrindo velado e contando causo, distraía a gente, igual que um mago, alinhavando algumas pazes com verdades e daí também sua muita importância: também ela um nada, mas tudo, como a palavra, sua réplica curva, redonda em si. Desenrolava-se desse mesmo jeito, dando linha aos transeuntes, contando, contando.

Certa vez, desenovelou-se, descompassou a valsa entre mundos, foi prolongado o seu sumiço. Não apareceu nas praças, nas calçadas das casas. E a gente toda sentiu o mistério da ausência. Acharam-na, com bengala, à imagem do horizonte, que ela tanto apreciava. Os olhares, um ensaio? De agora, disfarce irreversível.

Logo se agitavam todos. Pensavam que, a Dona, deveriam louvar e preparar seus ritos fúnebres, tementes, temerosos de alguma sua forçarrebelia, porque nunca souberam de ausência e presença do horizonte Improtelo. Escondiam os olhos da brasa dos céus e rezavam apressados quando davam as meia-horas; rezavam em nome de Dona, em prol deles mesmos. Saudosos causos, saudosas alinhavadas pazes: queriam uma echarpe de linho de Improtelo, simples e bem costurada, para cobrirem seus próprios males e agitações. Dona Improtelo… de seu novo estado se fez o caos.

Mas a mágica também assustava. O grande caos assustava. À querência de mágica, o medo: muita gente não entendia como ela podia ter sido assim e assado, como é que podia ela estar ainda (uma presença), não estando, em tanta coisa, ou o contrário – ela, um diabo.

E travou-se a briga coletiva, a discussão sobre a forma de despachá-la. Decidiu-se, na força do braço, não queimar o seu corpo. Diabo gosta de fogo. Com crenças narenascença, depositaram-no, horizontal como estava, num vazio, longe de tudo, querendo que o corpo sumisse, o corpo velho-moço de Dona; querendo que o espírito caminhasse livre, que Dona se torne em vulto manso! Fique em Paz! Coisa incerta que aparecia, esse anjo endiabrado. Pediam paz.

No grande vazio, desenterrado, ficou o corpo. Temiam tocá-lo e, com isso, profaná-lo, temiam tocá-lo e contrair seu desmedido mistério: “o olho que muito olha se cega”, coisa assim iam dizendo entre si sobre os que pensavam em enterrá-lo, fazer dele o pó da terra para terra retornado. Deixaram-no, só e só.

Uma louca, uma lacuna. Horizontal.

Dona Improtelo se disfarça. Rendonda de si para si, redonda em si e no outro, apenas redonda, como o mundo e como a palavra. No nada absoluto, partícipe das grandes obras universais. Dona era um novelo sem lã e tudo; talvez uma falésia, um cume, uma grota, provavelmente uma ponte. Natural que só e só.

Para recobrar alguma coisa, ou por incapacidade de resistir à magia, tão encarnada, mas tão Alta de Dona, o povaréu seguiu recontando suas estórias improteláveis.

Improtelo de palavra é.

Ela se quedou flutuante nos causos contados, nas estórias mais simples e alinhavantes, como uma echarpe crua e bem costurada, servindo de envoltório rico para os medíocres aspirantes a existir redondamente. Disfarçada, camuflada nas gentes, nos sorrisos das gentes contando e ouvindo estórias. Natural que só. E só.


Carolina Quintella (Rio de Janeiro,1996) é escritora, professora, feminista e artivista. Licenciada em Letras Português/Espanhol pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, e mestranda em Literatura Brasileira pela mesma instituição, é coautora de sussurro: cantos de chuva (Editora Urutau, 2019) e Filhes de Sycorax (Desalinho editora e Ganesha Editorial, 2019).