“Lupita”, poema de Bruno Molinero

lupita

o vulto
que rasteja
pela sombra
não é cachorro
nem demônio
coisa ruim

é só lupita

que se arrasta
penitente pelos
paralelepípedos
joelhos rasgados
deixando rastros
de suas artrites
reumatismos
cáries
abortos
arritmias
hérnias
e estalos
que só os velhos
carregam nos
corpos cobertos
por camisolas puídas
costuras esgarçadas
cabelos revoltos
de noventa anos
como os de lupita
que chega
na porta
da vendinha
pontualmente
e se encolhe
onde ninguém
pode vê-la
mas todos
sabem
que ali
descansa
paciente
e enxuta
uma bruxa

o dono
já não dá
boa noite
nem oferece
um saco de
pão dormido
só dá graças
ao bom deus
que a velha
apareça no
instante em
que a porta
de ferro fecha
e ele caminha
vacilante
para casa
onde a mulher
esquenta o miojo
bem longe de
lupita
que mal cabe
na alcinha
frouxa
deitada
sobre a poça
de urina
na esperança
de a pizzaria
lá do outro
lado da rua
abrir depressa
não pra pedir
sobra de comida
resto de massa
mas pra ver

guilherme

o motoqueiro
grande amor
que faz lupita
se derreter
e repetir
diariamente
a penitência
de joelhos
casquinhas
leprosas
pelo asfalto
vislumbrando
o dia em que
vai notá-la e ela
sentará na garupa
do rapaz de capacete
a noite inteirinha
nariz na alfazema
entregando pizzas
por ruelas escuras
varandas gourmet
festinhas da larica
que obrigam o casal
a voltar só bem
tarde pra casa

hora em que
ela prepararia
um café forte
com bolinhos
e conversaria
com guilherme
até que ele
se atrasasse
pro outro emprego
e tomasse banho
enquanto os calos
torcidos feito galhos
dos dedos de lupita
passariam o terno
esperando que o
menino ressurgisse
usando apenas
uma boxer vermelha
e lupita o vestisse
como a um filho
primeiro
a calça brim
depois
a camisa
gravata
e o paletó
de segurança
já em cima
da moto voando
rumo ao shopping
aflito pela demissão
por causa do atraso
até começar
tudo outra vez
:
pizzaria
garupa
vento
café
bolinhos
banho
despedida
atraso
shopping

mas
naquela noite
de garoa fina
que faz o corpo
de lupita
tremer
dores
gritarem
líquidos
dos ossos
dentes
trincarem
guilherme demora
e uma vizinha passa
a passos curtos
que logo notam
o bloco de rugas
e peles soltas
ensopadas
ô
dona lupita
vamos pra minha casa
a senhora vai adoecer
com esse frio
pegar uma gripe
está precisando
de alguma coisa?
mas a velha fuzila
a intrusa samaritana
e deixa a mulher
aliviada pois
já pensou no trabalho
que é dar banho
nesse traste
e no cheiro
do banheiro
depois?

é quando lupita
escuta a buzina
e sente o farol
xenon que
anuncia deus
em procissão

guilherme

que não para
pra beber
com os motoboys
ou pedir as caixas
de pizzas frias
já que o ganho
na quebrada
vem por pedido
e perder tempo
é pra quem tem
a barriga cheia

não

ele estaciona
ao lado de lupita
e a velha levanta
como se tivesse
dezenove anos
e a mesma vontade
do menino tatuado
diamante pendente
embaixo do olho
e ela volta a ser criança
frente ao rosto namorado
até que o motoqueiro
aproxima os lábios
que dão medo por
causa do aparelho
colorido do rapaz
mas
mesmo assim
ela beija guilherme
pela primeira vez
pálpebras fechadas
pra nunca mais
esquecer
aquele gosto

pena que ninguém
pôde ver a cena
e se pesquisar bem
ou pedir o registro
das câmeras
naquela noite
mais fria do ano
vai notar que
guilherme
não foi ao trabalho
nem desceu a rua
com faróis ligados
rentes a lupita
pois ficou em casa
com o filho bebê
doente de febre
sem trocar ideia
com os outros
motoqueiros
bêbados demais
pra perceber
no lado de lá
da via vazia
um corpo
lupita
sozinha
tremer morta
olhos fechados
gengivas à mostra
como se mirasse
jesus em vida
abraçando-a
até que de manhã
o dono da venda
a encontrasse
no mesmo lugar
quase sorrindo
ao lado de
uma vela
disforme
apagada
e pronta
pros garis
lavarem
embora

 


Bruno Molinero é jornalista e autor de Alarido, que venceu o prêmio Guavira de Literatura. Seu segundo livro, Férias na Disney, será publicado neste ano pela editora Patuá.