Mônica vai jantar e o desajuste das coisas

Uma novela inteira sem vírgulas, um fluxo de consciência que não começa, nem termina, surge no papel com uma frase que se prolonga páginas após páginas e não se fecha em ponto. Mônica vai jantar, segundo livro de Davi Boaventura, texto para mestrado em Escrita Criativa da PUC-RS, tem 88 páginas de uma única frase, e este é o seu fato físico. Folhear um dos seus exemplares passa pela constatação de que a linguagem não é mais um convite de transcendência, em que ler se dá como uma codificação para acesso a outro mundo; não, a linguagem é um objeto, uma coisa. Lidar com coisas é um ponto central nessa trama.

Mônica se arruma para um jantar de fim de ano da firma, quando o seu marido aparece arrebentado em casa, de uma surra levada na rua. Ele foi flagrado se masturbando no ônibus, e os passageiros o expulsaram a socos e chutes. Fugiu para casa, o apartamento que eles dividem como “casados/namorados”. Ela sofre um baque: quem é aquele homem estirado com sangue no chão da sala, tão comportado durante quatro anos, e que escondia uma perversão como aquela? Mônica precisa lidar com a novidade e cumprir as obrigações da rotina: ir jantar. Somos conduzidos assim à sua mente em aceleração.

A normalidade foi quebrada, ela tenta lidar com os objetos, mas eles não são mais os mesmos. Mônica esquece o que iria fazer em seguida, perde-se em procedimentos simples, já repetidos várias vezes e que então não fazem mais sentido. Nessa trilha, a novela parece remeter à epifania dos objetos ordinários de Clarice Lispector, em que um rato na calçada, uma barata no armário ou um cego a mascar seu chiclete são estalos para o fundo indizível da realidade. Tanto a protagonista de Boaventura quanto as de Clarice desatam o fio do mundo comum e não conseguem mais reatá-lo, entram nas frestas das formas, dos sentidos, e tentam não se perder.

Uma diferença a se pontuar é que Mônica não tenta multiplicar o mundo com novas palavras, com encontros maiores de significados, como faz Clarice Lispector. A ascensão poética não salvará a protagonista, talvez porque o seu caso seja imediatamente concreto, venha do outro com violência e obrigue a uma decisão. Dessa forma o fluxo de consciência de Mônica não é etéreo, está tocando cada coisa ao redor e se desencontrando. Nisso reside uma angústia que resvala no leitor: as coisas ao nosso redor se organizam apenas a partir de nós, elas mesmas não dizem nada, elas mesmas são um puro nada. E como incomodam!

O universo do livro é de quinquilharias e de possibilidades que não se esgotam. Para um jantar, vestidos, maquiagens, lápis, delineador, e para cada um certo estojo, e para o estojo, uma gaveta. Nas ruas, a cidade também está cheia de cones, obras, barracas de praia sob justiça, carros, a demora do portão da garagem, a cancela da guarita do condomínio, a via bloqueada em uma das pistas… A narrativa se remete com insistência a tais pequenezas (até mesmo ao modo como a personagem aperta a embreagem em determinada manobra), e o que seria um preciosismo de detalhes, é mais uma indicação constante da presença física da realidade. O incômodo é a exigência constante dos objetos, não só a exigência da racionalidade, da razoabilidade, das obrigações sociais, como também da lida infinita com coisas.

Eis a náusea dentro da náusea: ela não sabe quem é mesmo o marido, e quem é ela própria no interior de seu próprio engano, como também qual é o sentido do fio que a faz organizar tantas cobranças de tudo a seu redor. Não se trata, é claro, apenas de uma questão de condição humana atual, urbana, de classe média, é uma questão de um papel do feminino acima de tudo. A mulher é aquela quem precisa lidar com milhares de coisas, e mesmo teria um talento especial para os múltiplos focos (uma proposição mais sociológica do que biológica…), e a trama parece bem representar. É um modo de vida fadado a exaustão, e é neste ponto que a escolha estilística da linguagem cai tão bem para nos dar o exato efeito do frenesi e do cansaço.

Mônica vai jantar é, assim, uma experiência, um contato. A proeza das vírgulas consegue captar o leitor e acostumá-lo a esse desprendimento, exceto por duas ou três passagens confusas, e uma pelo menos em que a ausência da pontuação se força um pouco. O mergulho no turbilhão da personagem é uma marca aflita dos tempos, dos impasses nas relações, na dureza das grandes cidades, na lida sobre-humana de nossos afazeres (e ainda mais, dos triplos afazeres ainda de uma mulher, agora) e na pergunta crucial sobre o nosso comum desajuste ao mundo das coisas em que uma classe finge se ajustar.

Título: Mônica vai jantar
Autor: Davi Boaventura
Editora: Não Editora
96 pp.
R$ 39,90


Saulo Dourado é escritor e professor. Autor do romance O borbulhar do gênio e do juvenil Amar é uma conexão discada. Mestre em filosofia pela Universidade Federal da Bahia.