quatro poemas de marcelo ariel

* do livro inédito A água veio do sol, disse o breu

 

a oitava asa de michael jackson

A asa é bem nítida no meu sonho, ela é preta com linhas douradas

O Sol sorria
quando ele chegou  no Morro Dona Marta
Diante de um acaso preparado para nomear realidades pré gravadas, seu sorriso se dissolveu
no enxame que  o seguia
 sem precisar ser ou estar realmente ali.
Ele era a própria coisa dissolvida
 parecendo não possuir movimento ou alegria, apenas vontade e intuição
anoto duas palavras mentalmente
priocepção e analepse

Ouço uma voz que parece ser a de John Coltrane saindo de dentro da asa
e ela sussurra:

Ouçam irmãos e irmãs
o sol é o projetor
 os planetas e tudo o mais
 são o  filme do som
 orvalho adentro
 através dos raios
de tudo o que é vivo
 o tempo deseja morrer
 e assim reluz neste preto
o brilho do fósforo aceso
na água de teus olhos dorme
o êxtase da respiração
 do sol,
do orvalho
 da lua
do efêmero infinito
 em seu exílio migratório
 da luz
 em vossa casa
de grão
 cristal
 pólen
 sangue
 lágrima
 e sal

Em outra visão
lá está ele encostado na parede
do estúdio onde Stevie Wonder
grava o riso das plantas

Agora ele corre no meio das vielas, bem na frente de Spike Lee
Ele não consegue fugir dos paparazzi que chegaram antes de tudo,
Há um no telhado de um barraco,
com um branco apontando sua AR15 para o azul do céu
ali ficam as biqueiras, alguém me diz
ele achou a palavra engraçada
b’qu’eras

Há alguma coisa no ar do Brasil
que ofusca a tristeza da guerra
Spike diz

Ele tirou a luva para apertar as mãos de um dos músicos do Olodum
Uma menina lhe presenteia com o disco de Gilberto Gil



A música não é a resposta para coisa alguma e nem
 está no lugar de algo. Ela é ela mesma e não existe senão
através dela. Em um processo que está sempre se transformando e
e ao fazer dessa transformação um processo também físico, estou tentando
ser fiel a ela?

A asa estava pensando em uma suspensão do tempo
e em um exílio, também.

A oitava asa de Michael Jackson jamais se abriu completamente
em outro tempo onde ele está morto
ela se converteu em uma estátua segurando um fuzil.

Agora ele abraça uma menina preta
 no meio da multidão e sussurra no ouvido dela
um I love you
que faz as asas
se moverem como uma porta
entreaberta
Você diz isso
para todo mundo
diz Diana Ross
que está com ele
em uma varanda
e o vento faz uma dança
com os cabelos dela
repetido por essa palmeira
no meio da favela.

Andar na Lua
foi um comentário irônico
sobre a condição Black
e a new plantation mental
da estrutura imóvel
da segregação
Eu falo com o corpo
através da música
É uma autonomia
que não pode prescindir
de uma ética de fuga
Nunca se esqueça
os brancos jamais irão aceitar
o fato de sermos gênios
e você resgatou quase tudo
o que eles roubaram de nós
disse Miles Davis
por telefone
logo após o Grammy
Você vai ficar parado aí ?
Stevie Wonder comenta
depois de tocar em seu rosto
Vou escrever uma canção sobre isso, penso
Uma canção sobre ficar encostado no muro
Por que você escolheu gravar na Bahia e não no Rio ?
Spike pergunta
Por causa do disco de Coltrane e do Olodum
O Cristo redentor me dá arrepios, me ouço dizer


photomaton ossip mandelstan

Schubert sobre as águas, Messiaen
nos pássaros
o assovio de Goethe pela estrada
Hamlet e seu olhar cauteloso
assistindo a peça
A horda criando coragem,
nela acreditando
O sussurro nascendo antes dos lábios
a folha caindo de nenhuma árvore
flutuando
a Graça de uma casa
que é erguida
antes que a ideia de construí-la seja esboçada.


lágrimas marciais

rios

a chuva marcha
para dentro
em gotas dissonantes
por causa da imanência
cai como soldados
O Sol
em trincheiras
insistente
irregular
intermitente
borrando cartas e retratos
autônomo guiando este e outros rios
guardados onde o sangue
como estes raios
ainda é quente
nos mortos

[Escrito com Ana Moravi]


dessonho

Bach está sentado na cama ouvindo o vento, a luz atravessa a árvore e todas as possibilidades tentam um símile do Real como no Poema sobre Dante de Hans Magnus Ezsenberger onde o céu é ao mesmo tempo Dante e a árvore transformada em luz saindo dos dedos do negro dormindo em pé no presídio, árvore transparente e imaterial preenchendo sua mente até que ele desperte em outro não-lugar atemporal sem nome lendo as nuvens.


Marcelo Ariel é poeta e ensaísta. Autor de Tratado dos Anjos Afogados (Letra Selvagem), Com o Daimon no Contrafluxo (Patuá) , Ou o Silêncio Contínuo poesia reunida 2007-2019 (Kotter Editorial), Nascer é um incêndio ao contrário (Kotter, 2020) e Subir pelo Inferno, descer pelo céu (Kotter Editorial, 2021) entre outros. Atuou como ator/roteirista no filme Pássaro transparente de Dellani Lima e gravou o disco de spoken word Contra o nazismo psíquico com o Projeto Scherzo Rajada. Atualmente coordena cursos de filosofia e escrita em São Paulo e prepara o livro de ensaios A hiperinclusão-processos de cura da ferida colonial e a novela A Vida de Clarice Lispector.