quatro poemas de natália agra

rigor

de uma só vez empilhar
cuidadosamente
todas as mãos frias
de uma só vez chorar

 

fogo-fátuo

Nada mais vai me ferir

velei teu corpo por tanto tempo que ainda bate em mim o pó secreto alheio àquela noite. por doze horas resistimos à ideia de que você não mais estaria ali. e esse pó que se reverte em torpor me faz, de novo, chorar com toda a clareza que só a porta da separação nos inflama – as lágrimas descem como vitrais, como colmeias, como elefantes. ergo os olhos para você na parede, sem que teu retrato exista, de fato. o que existe é a memória de algo desbotando, que escorre feito pigmento que contorna algum rosto que mora sempre no que nos ancora. ontem tentava tocar tua voz e fui mais longe, tentei tocar também a voz de minha avó e de meu avô (que morreram tanto tempo antes). não consegui. de meu vô, guardo o fanho da língua – silencioso, guardava, no sereno, a densa e forte fumaça do cigarro de palha (difícil verter qualquer palavra para além do necessário – meu avô, um deserto). de minha vó, quase toda a gargalhada, o passeio pelas flores que ela, em sobejo, cuidava – quase tanto ela mesma uma rosa (era fácil – minha avó, um jardim). pensei em minha mãe e em meu pai, que nunca ouviram de minha irmã a palavra mãe ou pai. pensei o quão cruel foi não poder ouvir o que esperaram por muito tempo e imagino como foi ainda mais difícil ouvir de mim, que, por ironia, guardei e falei suas primeiras palavras. pouco, muito pouco esbarrei na voz que estampava no retrato, uma vida inteira malograda. estou perdendo tua voz. a voz exata, intacta. a voz que, momentos antes da tua morte, já parecia tão diferente da que eu conhecia. às vezes, ela reaparece por um milésimo de segundo em minha mente, para depois ocultar-se novamente. tenho um filme teu, no qual tua voz está lá – estala, expressiva, melancólica, cansada de perseguir os mesmos planos. estala. está lá, mas sou eu que não consigo atravessar a finíssima película da voz que já não existe. deixo-a por lá, perdida nas nuvens do computador, em sua finitude maquinal. a ideia do esquecimento apavora. diante disso tentamos nos proteger de alguma forma nas reminiscências, mesmo que o toque esteja a quilômetros do corpo, o hipocampo espalha suas longas notas que ficam planando, registrando cada instante. o hipocampo e sua orquestra afinadíssima. cada nota uma lembrança esboçando o espaço numa música antiga. estamos todos inexistindo nesta fábula inquietante pelo deserto. reviver traz de volta a imutável condição de ser fonte e ser ferida. é preciso rememorar o segundo final na tentativa de abraçar o que está submerso. dedico várias horas dos dias no diálogo áfono com cada um dos meus mortos. fantasmas presos eternamente no assoalho da memória. se pudesse, engoliria a voz que entra pela porta sem nenhum contraste. o espaço e o tempo presentes no canto da gaivota perdida. para sempre. um rio em suas ruínas, a gaivota – um pequenino ser com a sua morte dentro. sou eu, também, pequena morrendo a cada passo? percebo, agora, que, durante aquelas dozes horas em que observara teu último pesadelo, naquele labirinto insuperável, onde, se observasse bem, dava para vê-lo correndo, em busca da saída mais próxima, através do ouvido acerado que escutava de mim o desespero: não consigo segurar minhas lágrimas do mesmo jeito que você. e você já ouvia o pássaro que ninguém mais ouvia. o pássaro indiferente a todos os outros – antípoda aos pássaros da minha infância, que você tão pacientemente aguardava os primeiros sons deslizando por tantas horas incompreendidas. ouvimos tantas vezes o mesmo pássaro, não é, pai? e teve que ser eu a fechar a última porta entre nós. parece certo dizer, por repetidas vezes, que há em toda morte um pouco da nossa própria morte. um duplo terrível. um espelho fantasmal. e real. a gente contempla, na figura do outro (estática), o início do nosso fim. hoje, passados tantos anos, aquelas horas derradeiras e por horas infinitas, em que guardei do teu rosto as últimas folhas, reflito sobre o rio que agora nos distancia: somos meu pai e eu: um rio imenso, que nos atravessa.

repouso

cerejeira, companheira do vento
os frutos de sangue
não tocam mais as nuvens

suicide song

para Alejandra, que tinha lobos nos olhos

We are helpless to resist
Into our darkest hour

Radiohead


o silêncio me escolheu

estou só com minhas vozes
shots de sal de lítio
                                   as últimas gotas de
                                                                      chá de hibisco

pelo caminho
           o crepúsculo
íntimo do
             suicídio


Natália Agra é poeta e editora. Nasceu em Maceió (AL) e vive em São Paulo. Publicou os livros de poesia De repente a chuva (Corsário-Satã, 2017), o megamíni fotogramas [o silêncio possível] (7Letras, 2019) e Noite de São João (Corsário-Satã, 2020). Publicou também o livro infantil Os balões de Nise (IOGRAM, 2019). Edita, ao lado de Fabiano Calixto, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Guilherme Pinheiro, a revista de poesia Meteöro. É uma das organizadoras da Desvairada – Feira de Poesia de São Paulo.