um trecho de ‘espada mental’, novela de gustavo carvalho rocha

Um brasileiro está na Etiópia para concluir um projeto de documentário que atrasou, inicialmente, por motivos desconhecidos. Enquanto mistura o projeto original com o atual e descreve seus bastidores, o narrador aproveita para inserir suas opiniões sobre as pessoas envolvidas.

… morrendo de raghdirst (sede de vingança)…
Fogo pálido, Nabokov

O primeiro episódio

O primeiro episódio narra a história de Migaloo, o rinoceronte, e sua mãe. O protagonismo do menino, no entanto, não fica ainda claro; apenas se introduz as duas personagens; através de uma relação de zelo percebe-se que são mãe e filho. Este é seu episódio. Mas vocês já viram um rinoceronte cinza? Seu matiz é de uma insaturação tal que parece suplantar todas as outras cores: vermelho, amarelo, por Deus, até preto poderia repousar sob aquele tanque de couro, o sorriso tenebroso é o único vestígio no seu rosto indiscernível, caso ele te escolha para o foco de seu olhar; sem falar no chifre, feito de queratina, que desvalida sua caça. O que tínhamos no estúdio, por sua vez, não tinha chifre, fora mutilado; era enorme: você se perguntava o que havia por trás da palavra “monstro”: provavelmente um rinoceronte; ou a palavra “monstro” se escondia atrás de um rinoceronte; a batalha entre dois bichanos desses parece ter menos efeito neles próprios do que no solo, que treme para se sustentar, como um prédio em dia de vendaval; eles não são lançados no mundo; além do fato de que quando trombam, as criaturas estão cobertas de areia vermelha, e é como se suas cabeças se dissipassem numa nuvem adâmica. Vocês veem a sedução de um tal projeto? O exótico evoca o primitivo, e sabemos que estamos seguindo em direção à morte.

Então – Migaloo e sua mãe vagam o deserto, pois a época é de seca. É uma tragédia cíclica em suas vidas; são apenas animais, só querem sobreviver; alguma terra deverá ser negada a esses migrantes? Não muito longe da Etiópia eles avistam um lago. Decidem se alentar do calor feroz. Migaloo é receoso. O lago, afinal, tinha um dono: um rinoceronte adulto. Este teria aberto uma exceção para a fêmea caso ela já não tivesse acasalado, então decide expulsá-los. A mãe é teimosa. É tudo que tem. Na briga, ambos caem no rio – ela mais do que ele. A sua barriga está exposta, e um ataque de chifre poderia abrir uma ferida fatal. É então que Migaloo – sua loucura, sua coragem – ataca o opressor. Depois do tombo, este aprende que há força para além do músculo e deixa a família em paz. A mãe retribui a retidão do filho esfregando babosa nas suas feridas. Foi bom vencer desta vez, mas para sair dessa crise terão de revisitar as condições mais desumanas que eles apenas imaginaram.

Tudo será revelado. Eu até pensei em fazer deste comentário todo um capítulo, mas chamaria muita atenção. Nós tínhamos um narrador, um cara fera, com baita reputação, e estávamos animados com ele. Suas intervenções eram concisas e claras – o roteiro fora feito pensando em seu estilo, e ele conseguiu deixar o texto ainda mais particular. Certa vez, as coisas indo não tão bem assim, ele interveio fora do texto e exigiu que mantivéssemos a fala. Tratava-se de uma cena em que Migaloo se recorda exatamente desse ataque à mãe, e o narrador – cujo nome não podemos revelar – comenta que as secas têm sido benéficas para os reis da floresta, os leões, pois todas as suas presas se aglomeram nas cada vez mais raras regiões de água doce.

É este lago que permite a sequência da viagem. Ele funciona como miragem e porto seguro. Alguns dias depois, entramos em meio a um exército de pessoas que, paralisadas, observam os dois rinocerontes. Não são dois grupos que se cruzam, mas um único que observa a procissão de dois animais impossivelmente cinzas. Eram homens elegantes e Migaloo se deteve à chegada do mais bem vestido de todos. Este homem escreverá em seu diário: “Hoje Jesus filho de Deus me enviou Seu Chifre da Verdade. O Senhor está nos rinocerontes, bestas magníficas. Mas são tão magistrais que é como se tivessem traído a Confiança Divina e se tornado deuses eles próprios. Cuidado”. É este encontro que lhe inspira marchar na cidade de Aksum num rinoceronte negro. Este homem é o general Emílio de Bono, que invade a Etiópia em 1935 a mando de Mussolini.


Gustavo Carvalho Rocha, nascido em São Paulo em 1991, é formado em alemão e português (Bacharelado e Licenciatura). Tem textos ficcionais e ensaísticos em pequenas revistas, além do livro A cidade como alas de um museu, a ser publicado pela Editora Gota. O trecho enviado faz parte da novela Espada mental.