um trecho de ‘eu não tenho medo de ácaros’, romance de rita de podestá

Eu não tenho medo de ácaros conta a história de Clarisse, uma mulher que se divorcia, perde o trabalho e passa seus dias bebendo e observando os vizinhos da janela, entre eles uma chinesa que escreve num caderno todas manhãs e que acaba desaparecendo. Clarisse resolve inventar uma história para a chinesa: ela passa a ser Rong, uma mulher de Macau que vem para o Brasil se casar com um magnata brasileiro, o qual acaba perseguido por corrupção e morre num acidente de avião. Mas em meio à ficção criada por ela mesma, Clarisse começa a misturar as histórias e refletir sobre o próprio divórcio como uma forma de luto.


O principal catalisador do envelhecimento humano fica dentro das nossas células: pequenas casinhas onde vivem as mitocôndrias, responsáveis pela respiração celular. São elas que produzem os radicais livres, moléculas que têm um elétron a menos e que fazem mal à própria célula. Para nos manter vivos as mitocôndrias precisam, ao mesmo tempo, nos matar. Aos poucos. 

Bernardo arrumava a cama todos os dias. Não só esticava os lençóis ou dobrava a pontinha do edredom, mas sacudia tudo para fazer sair a poeira, o nosso suor, ele dizia, e para espantar os ácaros, esses seres inexistentes que faziam a festa em seu nariz assim que ele se deitava.

Ácaros são animais invisíveis que podem passar toda a vida numa cama. Os ácaros adultos medem entre 0,25 e 0,75 mm de comprimento. Acredita-se que existam até 1 milhão de espécies. Essa luta nunca foi minha. Até o Bernardo ir embora e eu me tornar a única vítima. Desde que ele se foi estou sempre com as narinas entupidas.

Com o tempo os danos causados pelos radicais livres se acumulam, o que faz com que o corpo envelheça. Resultado do cansaço de lutar contra esses malditos invasores, livres e radicais, que entram, fazem a festa, bebem a sua bebida, trazem amigos, derrubam a cerveja e não limpam o chão. Outro fator que causa o envelhecimento é a divisão desenfreada das células que não param de se multiplicar num bacanal desordenado. Em cada uma dessas divisões, fragmentos de DNA são perdidos, o que gera pequenos erros genéticos que serão herdados pelas células-filhas que, por sua vez, não conseguirão mais se dividir ou, pior, serão destruídas pelo próprio organismo. 

Antes dele sair de casa, de vez, para um sempre que dura até hoje, nós fizemos sexo. Um sexo com medo de ser o último, porque era, e foi por isso que eu chorei, por mais patético que seja chorar depois de um orgasmo.

Às vezes eu acho que o corpo é meio burro, ou meio masoquista, ou um workaholic que não sabe separar o trabalho do lazer e mistura o que não deve ser misturado.

Eu chorei porque era uma despedida não do prazer, mas da intimidade que é fazer sexo com quem te conhece há dez anos e não liga quando você reclama da cãibra na coxa ou quando não raspou os pelinhos todos, uma aparada só, não faz mal, ou quando você nem quer fazer sexo e só fala que enjoou de comer tapioca todo dia, ou que comprou uma calça jeans um número menor, porque calça jeans cede depois que lava na máquina. Só de pensar em recomeçar a intimidade com alguém me dá vontade de desistir.

A intimidade só cede depois de muitas lavadas.

As células da pele se renovam tão rapidamente (a tal da desenfreada divisão celular) que, quando chegamos próximos aos 40 anos, cerca de 180 kg de células já foram eliminados.

Depois do sexo, o banho. Juntos. Ele, como sempre, com a mania de me lavar. Eu um bebê que já sabe ficar em pé. Ele um pai zeloso. Eu uma criança carente. Ele um adulto tarado. Eu uma jovem medrosa. Ele um dominado. Eu uma dominadora. Ou todos esses temas tratados pela filosofia, mitologia e psicanálise.

Ele lavou cada dedo do meu pé, um por um, e eu me toquei que dali em diante o meu entre dedos seria sujo. Teve aquela viagem para o Panamá que eu voltei com frieiras e carrapatos que são da mesma família dos ácaros. Um carrapato pode ficar anos sem se alimentar, parado num tronco de árvore, até passar um animal, quando ele se joga e gruda no corpo do bicho eleito, onde passará dias, meses, anos sugando o seu sangue. Tanto tempo de espera, à espreita, até achar alguém em quem se grudar e sugar todas as expectativas de felicidade, paixão, sexo, paz de espírito, ano novo na praia, louça lavada, casa própria, bom humor nos dias do seu mau humor, sopa em dias frios, joias nas bodas de papel latão e prata, não, meu amor, não precisa ir na minha mãe, sim eu te amo, sim você é a mulher da minha vida, sim até que a morte nos separe, sim eu prometo que não morro primeiro, sim pode comer a última fatia, sim pode ler as mensagens do celular porque eu não tenho nada a esconder, sim o que você quiser, meu amor, sim, eu aceito.

Os animais vivem à espreita. O homem não é um animal que raciocina, é um animal que ama, porque nenhum animal inteligente amaria se soubesse que no final o amor se reduz a nada. A ácaros.

Cabelo e pele envelhecem ao mesmo tempo, como se fossem um casal até-que-a-morte-os-separe que morrem juntos para não terem que se separar. As células do couro cabeludo param de produzir melanina, deixando os fios brancos. A pele, devido à queda na produção do colágeno, fica flácida e fina, o que causa rugas acentuadas, principalmente no rosto.

Antes de ir embora ele me ofereceu para arrumar a cama, a cama que até aquele dia era nossa e dos ácaros que também eram nossos, e tanto a cama quanto os ácaros passariam a ser só meus. Cabem três nessa cama, gigante, caberia o filho que a gente não teve, ou o cachorro que soltaria pelos que se uniriam aos ácaros e ele espirraria mais. Cabem meus cinco travesseiros, quatro para a cabeça e um para colocar entre as pernas. Quando tinha a sua, perna, a gente encostava calcanhar com calcanhar, só para dizer que estávamos ali, porque dormir abraçado a gente nunca gostou. Vai que coça, vai que quer mexer, ir ao banheiro. O calcanhar encostado era uma prova de amor tão mais bonita que um abraço.

Eu disse que não, não precisa.

A vista cansada é causada por falhas no cristalino, quando uma parte do olho fica rígida e opaca e passa a ter dificuldades de focalizar os objetos. Envelhecer é perder o foco. Aos 60 anos, as pupilas se reduzem a um terço do tamanho que tinham aos 20 anos, o que faz com que o lusco-fusco seja extremamente desconfortável. Nada de pôr do sol quando a vida se vai.

Não queria que ele arrumasse a cama antes de sair, de vez, mas que fizesse a faxina, aquela que ele faz tão bem, de esfregar a vassoura com sabão no azulejo que é manchado e a sujeira se mistura com a mancha. Não sei fazer faxina, nunca soube, ninguém me ensinou. Ser limpa nunca foi minha prioridade, não que eu seja suja, talvez um pouco, é que eu nunca me incomodei com o que fica nas frestas.

Ele saiu, mas pareceu que foi viajar ou que só tinha mesmo saído para o trabalho, do tipo bom dia meu amor, bom trabalho, volto às sete, que tal um japonês? Eu comecei pela louça. Choro de detergente. Os pratos e talheres esfreguei fraco, bem fraco que era para não tirar nenhuma marca e nos copos passei só água. Depois varri todo o apartamento, deixando a sujeira no cantinho da cozinha com a vassoura encostada fazendo uma barreira inútil. No pano de chão borrifei o perfume que ele deixou no armário do banheiro, quase no fim, e na máquina de lavar joguei as roupas claras junto com as escuras apostando que venceria o azul marinho da calcinha nova.

A partir daquele dia eu sabia que eu seria um pouco mais suja. Do tipo que transa com um desconhecido na pia de concreto e só estica o lençol ao invés de arrumar.

Danem-se os ácaros.

Por causa da queda na produção de células perdemos até três quilos de massa muscular a cada década. Esse relaxamento prejudica os músculos da bexiga, que ficam flácidos e acabam não segurando nem mesmo uma mínima vontade de fazer xixi. 

Um almirante da marinha norte-americana, num discurso inaugural na Universidade do Texas, disse que arrumar a cama é o primeiro passo para mudar o mundo: precisamos concluir tarefas para nos sentirmos úteis. O Feng Shui diz que o hábito de arrumar a cama todos os dias ajuda a organizar a mente e torna os pensamentos mais claros e objetivos. Em uma pesquisa feita com 68 mil entrevistados, descobriu-se que 71% das pessoas que arrumam a cama pela manhã se declaram felizes.

Eu não confio em pessoas que se declaram felizes.

Na velhice, a tireoide funciona mais devagar, desacelerando o metabolismo e aumentando o risco de engordar. A gordura em excesso pode ser fatal, além de feia e, se acumulada nas artérias, pode causar infartos.

Quando ele me disse para arrumar a cama todos os dias eu estava com cara de quem chorou depois do orgasmo, segurando a porta enquanto ele já estava fora dos limites do nosso apartamento, com os pés próximos a um rolo veda frestas. Quando ele disse que eu deveria arrumar a cama todos os dias, eu respondi não, eu não tenho medo de ácaros.

Não nos falamos mais.

Com o tempo, algumas células do aparelho auditivo param de se renovar. Primeiro vem a dificuldade de se ouvir os sons agudos, depois os graves. Além disso, os cílios caem (não os dos olhos mas os que levam o som para dentro do ouvido), e os ossículos internos, também chamados de martelo, bigorna, estribo ou cóclea, que têm a mesma função dos cílios, endurecem. Resultado: começamos a escutar mal. O que é ruim, mas pode ser bom, depende de quem fala. 

Se o Bernardo morrer hoje, agora, se ele já estiver morto e a notícia ainda não chegou até mim, se ele morrer nesse minuto, a última coisa que ele ouviu de mim foi: eu não tenho medo de ácaros.

A cada ano as cartilagens perdem um pouco mais de rigidez, fazendo com que as orelhas e a ponta do nariz fiquem mais flácidas e caiam, o que dá a impressão de que ficaram ligeiramente maiores.

Depois que ele foi embora eu tive insônias e passei noites contando quantos ônibus aceleram na avenida que é até longe, mas parece próxima de tão barulhenta. E desde que ele foi embora tenho que me contentar com os ácaros, esse animal que dorme comigo, todas as noites, sem que eu saiba em qual lado da cama ele está, se roubou meu travesseiro, se anda pelo meu corpo sem pedir licença porque sabe o caminho, incapaz de me dar um simples boa noite antes de eu não dormir.

Tenho fome quando tenho insônia. A falta de alguém parece a fome. Tem seus horários habituais e se você não se alimentar chega uma hora que ela some. É que o estômago produz um ácido que engana o cérebro e a mente alerta para a necessidade de se divagar em outros problemas (o que pode ser, inclusive, a fome).

A cada dois anos os ossos do rosto se renovam. Isso significa que, aos cinquenta anos, nosso crânio já está na sua 25ª cópia. 

Os olhos querem dormir, eu quero dormir e ainda assim não dormimos. A insônia é uma rebeldia burra que não dá nem ao menos prazer. A insônia quando se está sozinha parece que não existe pois não há testemunhas.

Ardem e o meio dos meus olhos coça.

Ele colocava o dedão no meio dos meus olhos. Pressiona mais, eu dizia, e ele, meio dormindo meio atencioso, pressionava bem onde coçava e com o outro braço fazia cafunés esparsos na minha cabeça pois sabia que movimentos repetitivos no mesmo lugar me deixam ainda mais ansiosa.

Eu dormia com o dedão dele entre os meus olhos e ao acordar os olhos já amansados gostavam de ver o rosto dele que enrugava, e ele parecia metade jovem, metade velho. Ele tão bonito ficava feio deitado, e eu gostava de imaginar nós dois feios no futuro.

A última célula do corpo demora 37 horas para morrer.

 Clarisse, quando eu morrer, quero que você doe meus órgãos.

 Bernardo, eu já disse, vou morrer antes, pede para sua mãe.

 Clarisse, é sério, eu quero doar meus órgãos e ser cremado, ok?

 Eu vou morrer antes, a gente já combinou.

Uma hora antes de morrer ainda se está vivo.

Eu não sei se o acordo vale para o divórcio. E se ele morrer hoje, antes de mim, e a mãe dele organizar o enterro no cemitério e um menino cego, há anos na fila do transplante, ficar sem as novas córneas e os rins, funcionam bem os rins do Bernardo, sempre bebeu tanta água. E se ele morrer hoje e quando me ligarem meu celular estiver sem sinal, ou for de madrugada quando eu deixo o telefone no modo avião, e se o colocarem debaixo da terra com todos os órgãos, e ele quer ser cremado, será que a mãe dele sabe que ele quer virar cinza e não ser comido por bactérias ou ácaros? Existem ácaros embaixo da terra? Mortos não respiram, mas o Bernardo espirra muito, já li que um espirro pode causar um derrame ou um ataque cardíaco se for muito forte. Tem um cara que no ano novo espirrou champanhe na cara de outro cara, e a festa era num lugar violento, e o cara que espirrou morreu esfaqueado. E se o Bernardo morrer esfaqueado, descumprir nosso acordo, e se o coração dele parar de funcionar ou as células desistirem de trabalhar, sei lá tipo numa greve geral? E se ele descolar a retina quando estiver lavando o rosto, aconteceu com um amigo nosso, e ele teve que ficar uma semana de cabeça para baixo depois de colocar um líquido novo no olho, mas e se ao descolar a retina o Bernardo tropeçar, cair e bater a cabeça? E se ele dirigir rápido e bater o carro de um jeito idiota, porque o Bernardo é um pouco idiota, e limpo, o Bernardo é muito limpo, mas tudo bem, não me importa, eu não ligo. E se ele morrer e eu estiver no terraço tomando sol como se ele estivesse vivo?

Talvez eu tenha medo de ácaros.


Rita de Podestá é mineira, nascida em Belo Horizonte, morando há 5 anos em São Paulo. Escritora e roteirista, publicou o conto “Estiagem” pelo Prêmio Sesc-DF Machado de Assis 2017; e “Céu de Janelas” pelo selo Selas. Seu primeiro livro de contos, Zaranza, sairá pela Editora Reformatório, que está nos últimos dias de uma campanha de financiamento coletivo.