Um trecho de ‘O melindre nos dentes da besta’, romance de Carol Rodrigues

Escolhe; diz a última voz, duas mãos ou galhos secos apontam direções: bombordo é tomado pelo sol, estibordo guarda em sombra a grande barra de metal. O emissário espera que eu caminhe pra mover os ombros insuficientes, entre o chapéu e o pescoço viveria uma maçã. Meu topo da cabeça raspa o teto baixo, encurvo e perco as mãos em uma saia de cigana, que se vira e os olhos não são de turmalina. Sento no último banco e ofereço a mão aberta, o emissário tira algema e chave do bolso, ajusta o meu pulso ao parapeito e tapeia as minhas costas só com a palma, sem os dedos, aperta a aliança com o polegar; pisca de soslaio os cílios muito longos de boneco, vai ao convés fumar o charuto que ganhou por me trazer.

Torço o dorso e me olham sem medo, oscilantes ora aéreos, ora minúsculos, indo vindo os pés em cascas e chinelos rotos, trouxas de potes e panos, panos soltos, alguns sapatos, poucas malas, um dois três quatro quadrados de couro. O motor vai alto e sem a fala tremem mais as mandíbulas. Tento apontar julgamento nas pupilas mas já não enxergo bem e nenhum interesse perdura, muito menos perguntam nas mãos, nem as crianças, o que eu teria feito. O que me atormenta é a falta de certeza na escolha, se o melhor não era sentar no lado ocupado pelo sol. As horas levarão a barra de metal a noventa ou cem graus; isso me tiraria alguns centímetros de pulso, o que talvez eu mereça, mas agora o barco já desliza.

Procuro na água um navio sumido, um afogado, não sei se o corpo vai pro fundo assim que expira ou se sobe antes de descer, se na descida pulsa involuntário, se o pulmão filtra a água e retém pra fora o sal ou se permite que entre e que se forme uma pedrinha branca no exato miolo do peito, e se ela se aperola com o tempo ou se faz pontas transparentes de cristal, e qual a probabilidade do afogado voltar à mesma praia ou de aparecer em outra civilização; e qual seria o interesse das baleias, e qual a tolerância dos peixes ao corpo reagente: se apreciam, esquecem, se assistem, se lamentam, ou se pra eles não faz diferença.

Título: O melindre nos dentes da besta
Autora: Carol Rodrigues
Editora: 7Letras
164 pp.
R$ 48,00


Carol Rodrigues é escritora e curadora de literatura na Biblioteca Mário de Andrade. Seu primeiro livro, Sem Vista Para o Mar, ganhou dois prêmios como melhor livro de contos de 2014: o Prêmio Jabuti e o Prêmio Fundação Biblioteca Nacional. Em 2017 lançou a novela Ilhós pelo Selo Jota da e-galáxia. É formada em Imagem e Som pela UFSCar e tem mestrado em Estudos de Performance pela Universidade de Amsterdam. Nasceu no Rio de Janeiro e vive em São Paulo.