“A voz de minha mãe”, conto de Verena Cavalcante

Minha mãe, antes de ser encontrada cheia de escaras, de hematomas abertos escorrendo como água barrosa, pernas abertas e calcinha enroladinha entre os tornozelos quebrados, uma flor vermelha e marrom se abrindo de dentro pra fora, apontando dos quadris tortos, boca bem aberta em ó, me ensinou que a gente não pode deixar o morto ser levado, exumado, enterrado, se ele não falar.

A fala póstuma, mamãe explica, olhos fixos na louça ensaboada formando bolhas no mármore da pia, mostra-se de múltiplas formas, cabendo ao ente querido perceber e decifrar as mensagens. O morto, por exemplo, pode tentar se comunicar por um bilhete encontrado na casa, como em uma lista de compras, para insinuar que há coisas que ainda lhe faltam – quanto maior a lista, mais são os assuntos pendentes. Ele também pode falar por meio de números de loteria, que indicam riqueza, libertação completa do mundo material na morte; nos padrões formados pelas teias sanguíneas sobre a pele exangue, mapas de hematomas, indicando desejos, pedidos, algo que não se mostra difícil quando já estamos acostumados a ler a borra das folhas de chá, desenhos bonitos no branco da porcelana. O finado fala também através dos sonhos dos filhos, das aftas que aparecem na boca dos recém-nascidos da família, no formato das varizes das avós. Preste atenção nos sinais, minha pequena Cassandra, porque um dia, se eu me for, você vai precisar escutar a voz deles. Nós, mulheres, somos intérpretes dos mortos.

E a voz da minha mãe? Tanto já tinha falado, gritado até estourar as cordas vocais por debaixo dos panos encharcados de água, ratos roendo as peles penduradinhas da vagina, sem garganta, sem língua, que quando encontraram-na de cabeça amassada, só o lado esquerdo, onde lhe bateram com o cano, encostei o ouvido na boca dela. Daquele buraco vazio, sem eco, as formigas transitavam de um lado para o outro, quietinhas, como se desprovidas de matéria. Escalavam meu rosto, picavam os cantos dos meus olhos, se enfiavam pelas narinas. Não sei quanto tempo me deitei ali, dando meu ouvido de mamar àqueles lábios frios, as pernas grudadas na gelatinosa placenta de seu sangue. Fala! Fala, minha mãe!

Quando me levantei, por fim, de orelhas vibrando, ensurdecida, marchei através da multidão de espectadores, desviei dos fotógrafos, voltei para a casa que dividíamos ela e eu, liguei a caixa de som. Antes de desaparecer com todos os outros tinha me instruído muito bem. Minha rebelde mãe. Com meus gritos, pelo microfone, estourei os tímpanos da cidade com a voz dela, que era a minha, a nossa, a de todos os mortos mudos do tempo. Fui intérprete dos desaparecidos, dos torturados, daqueles de quem a família jamais teria qualquer notícia.

A cidade não respondeu, muda, repudiante, de janelas fechadas. Não muito depois vieram os carros. De longe pude ver as fardas, os fuzis brilhando à luz artificial dos postes de rua. Tinham me escutado.


Verena Cavalcante mora em Limeira/SP. É formada em Letras pela PUC-Campinas. Publicou: Larva (Oito e meio, 2015) e O Berro do Bode (Penalux, 2018).