“as coisas perdidas”, conto de julia codo

* do livro Você não vai dizer nada (Nós, 2021).

 

Minha avó está de pé sobre o banco que tem uma das pernas tortas. Está procurando o chapéu na prateleira de cima do guarda-roupa. Os ossos da minha avó são arenosos, podres por dentro. O banco que sustenta seu corpo também está meio podre. As pernas da minha avó são tortas, como o banco, e têm manchas roxas de varizes, muitas. Há meses eu escondo suas coisas; primeiro as chaves, depois o pente, os chinelos. Agora o chapéu.

 

Ontem eu a fiz chorar.

 

Ela usa um perfume doce, muito forte – para mim, um cheiro vulgar, também podre. Rosa estragada.

 

É um chapéu bege muito feio, desses de tecido que as pessoas usam na praia. Só ela para sair assim na rua. Saias longas, pretas, até o calcanhar, blusas com flores antigas, que às vezes ainda comportam ombreiras e sandálias com um pequeno salto, como todas as senhoras. E o chapéu. Não sai de casa sem ele. É por causa do sol, que ela odeia. Não se pode confiar em quem não gosta do sol.

Eu sei que sua cabeça está desprotegida, os fios rarefeitos, transparentes. Sei que o couro cabeludo fica visível em algumas partes, que ela se penteia puxando a crina branca para o centro, onde estão as áreas mais depenadas. Sei que é por isso também que ela se cobre com o chapéu, mas não só. Ela gosta daquela casa fria e mofada que faz dos meus pés pedras de gelo irritantes. A sala é tão escura que nem sei por que temos cortinas nas janelas. Cortinas limpas, piso limpo, móveis limpos. E lençóis limpos que cobrem o sofá, porque eu e os gatos podemos sujá-lo. Ela recolhe os gatos na rua, tem pena. Que Cristo os proteja, isto sim, minha filha. Eles soltam pelos. Todos os dias precisamos passar aspirador para manter a casa higienizada. Imaculada, como ela quer.

Fingi procurar pelo chapéu por todo o guarda-roupa, mas minha avó me chamou de cabeça de vento. Não presta atenção, isto sim. Então me puxou para baixo e se pôs a escalar o banquinho agarrando-se no meu braço. Não é uma mulher pequena, pelo contrário, tem o corpo volumoso. Vi sua parte traseira, e aquele ângulo me fez lembrar do dia em que ela se sentou em cima das chaves para eu não sair. O pai da Karina me viu beijando um dos garotos do posto e contou. Eu tinha um encontro no fim da tarde e minha avó ficou sabendo. Implorei para abrir a porta, disse que precisava ir à farmácia, que morria de dor de cabeça, mas ela olhava para um ponto fixo na parede. As chaves aprisionadas sob o quadril largo e as coxas engorduradas. Eu me sentei encostada na porta com os braços em volta dos joelhos dobrados e fiquei ali até a noite. Minha avó pavimentando as chaves com pedra. Nós duas em silêncio. Depois fui para a cama sem jantar.

Já faz algum tempo. A gente cresce e vê nascer uma espécie de barriga debaixo dos mamilos, fica orgulhosa ao vestir um sutiã ainda frouxo, depois começam a nascer os pelos nos lugares mais estranhos e é melhor tirá-los logo dali. Um dia um homem suado nos diz algo na rua, outro dia os cabelos ficam desarrumados com o vento, tomamos chuva, e a roupa fica grudada no corpo. Filmes com vampiros ou Leonardo DiCaprio. Então estamos distraídas olhando uma pomba manca, quando chega um menino perguntando se já provamos chiclete de melancia ou algo assim – e é como se sentíssemos uma água gelada caindo pelo abismo do corpo, e isso quer dizer que já sabemos tudo. O menino continua tecendo considerações sobre o chiclete de melancia, que tem gosto de detergente, mas é bom.

Minha avó é uma mulher bastante metódica. Suas chaves sempre ficavam penduradas ao lado da porta. Enquanto ela dormia, peguei o chaveiro bem devagar, tomando cuidado para não fazer ruído. Pensei em deixá-lo no revisteiro que fica bem debaixo do porta-chaves – seria como se elas tivessem caído –, mas achei que desse modo o resgate seria rápido demais. Fiquei alguns minutos rodando pela sala, no escuro, sozinha com meus passos monocórdios, minha cabeça ensimesmada. Então decidi guardá-las dentro do armário do banheiro, ao lado da pasta de dente.

Ela ficou louca. Precisava ir à igreja, a porta trancada, as chaves sumidas. Procurava na bolsa-na-mesa-da-sala-na-mesa-da-cozinha-na-minha-mochila-no-chão-debaixo-das-almofadas-na-fechadura-do-lado-de-fora-na-bolsa-na-mesa-da-sala-na-mesa-da-cozinha-na-minha-mochila-no-chão-debaixo-das-almofadas-na-fechadura-do-lado-de-fora. Eu disse que podia abrir a porta, mas que estava de saída; ela sabia que eu trabalhava à tarde e só voltava de noite, depois da faculdade. Disse que, se ela quisesse, podíamos deixar a casa destrancada. É claro que ela ficou furiosa, que a ideia lhe pareceu, isto sim, uma blasfêmia. Com essas ruas, com essa corja à solta por aí.

O chapéu também ocupa um lugar fixo na casa quando não está sobre a cabeça. No cabide do corredor de entrada. Uma vez o coloquei na gaveta das calcinhas, elas são todas beges como ele. Outra vez ela estava atrasada, o banco ia fechar em 30 minutos. Eu gosto de observá-la com os passinhos velozes, mais velozes do que as pernas podem suportar, abrindo portas e gavetas, desordenando a casa e tentando ordenar a mente, tentando se lembrar. Fico em silêncio, quase sorrio, a sigo pelos cômodos. Quero que ela pense que está ficando esclerosada, como a dona Evangelina, que confundiu o filho com o Getúlio Vargas. Às 16h30, se sentou suada na cadeira da cozinha, um lenço secando a água do rosto, cobrindo a cara derrotada. Na manhã seguinte, encontrou o chapéu na gaveta de frios da geladeira.

Já são cinco gatos em casa, eles não gostam de mim. Criaturas de Deus, ela diz. Lavam-se. Mas os cães? E o homem no chão com os olhos amarelos? E as formigas que ela esmaga com a pontinha do indicador com a agilidade de uma trituradora industrial? Eu sinto o cheiro azedo que elas exalam após a morte. Agora sim, agora eles vão ver. Suas caras prensadas nas grades das cadeias. E nós vamos poder andar em paz, comprar nossas coisas, minha filha. Direitos humanos para humanos direitos, isto sim. Não para os que não trabalham, que não têm asseio. Para se drogar dão o seu jeito, isto sim.

Em suas buscas, ela se irrita com a minha inação. No fundo, agora eu quero observar as coisas desaparecendo, tudo se desfazendo com uma bomba atômica muda e vaporosa que ninguém nota. Ela está de pé sobre o banquinho, olha para cima e tateia as peças esquecidas nas profundezas domésticas. Insulta os grilos ruidosos da única árvore que sobrou na rua. Enquanto ela perde suas coisas, perde a si mesma.

Eu me lembro de um dia bom. Tinha cerca de seis anos e atirei na parede um vaso de cimento em forma de mãos. Minha mãe gritou muito, era o seu vaso preferido, talvez o objeto mais querido da vida, presente de um artesão de Cananeia. Uma história que ela nunca contou direito. Então eu chorei e me apertei num canto do quarto, pensei que ninguém nunca entenderia. Mas minha avó chegou e não se importou com o vaso quebrado, nem com a brutalidade do ato. Ela me abraçou e disse que Cristo não gostava de ver criança chorando, e eu chorei mais e pensei que então minha avó entendia o que era a dor. Ela tinha o corpo grande e mole, e eu quase sumi dentro dele.

Dos beijos, nunca gostei. Ela tinha os lábios mais molhados que o normal. E com essa idade eu tinha horror a saliva alheia na minha pele. Ela me queria sempre bem limpa, me esfregava tão forte que eu saía do banho vermelha. A esponja, com o passar dos anos, foi ficando desgastada e machucando menos a pele. Até que um dia derreteu por completo e ela comprou outra.  Se eu soubesse que o carro da minha mãe explodiria na estrada para Pirassununga, depois de bater no caminhão-tanque, se eu soubesse que suas células desapareceriam do mundo junto com a lataria, não tinha atirado aquele maldito vaso em forma de mãos. Vejo agora os dedos de cimento quebrados no chão. O vaso voando no ar, minha mãe e os dedos de carne voando no espaço. E depois eu sozinha com essa velha. A igreja em forma de caixote sem janelas, cadeiras de plástico. Cheiro de perfume de rosa podre. Agulha de crochê.

Foram duas noites chuvosas, duas noites em que a luz acabou no bairro. Naquela época, era como se o desejo subisse pelas paredes em gotículas de suor. Ia subindo até chegar ao teto e cair na minha testa. Eu já não tinha horror à saliva alheia na pele, na boca. Nem ao suor. Passava os dias naquele quarto apertado sem luz, os raios de sol clandestinos entrando pela janelinha minúscula com vista para o muro. E esse garoto, o Gabriel. Era de noite e tínhamos acabado de sair de uma apresentação de teatro do colégio. Ele quis me acompanhar até em casa; havia um resto de chuva, mas dava para caminhar. Então acabou a luz da rua e tudo ficou calmo demais. Eu vestia uma saia vermelha e os pingos já não esfriavam minhas pernas. O Gabriel chegou muito perto, envolveu minhas costelas e só encostou a boca no meu pescoço. Eu quis que ele continuasse.

Ontem, quando o chapéu estava amassado debaixo do travesseiro, ela pensou que o tinha esquecido na farmácia, telefonou para perguntar. Quem atendeu foi a Dona Fininha, que é irmã do dono. Eu me lembro da Dona Fininha. O chapéu não estava na farmácia, nem-na-gaveta-das-calcinhas-nem-na-geladeira-nem-no-guarda-roupas-nem-no-varal-nem-no-sofá-nem-na-mesa-da-sala. Envelhecer é como escalar uma grande montanha, isto sim – ela dizia. E chorava encolhida com um gato no colo. Já faz duas semanas que eu escondo o chapéu, não todos os dias, mas vários deles.

Na segunda noite chuvosa, eu contei da gravidez. Ela disse VA-GA-BUN-DA. Lembro de cada sílaba e das pausas. Nesse momento, seus lábios estavam molhados, viscosos, como quando ela beijava o meu rosto. Vi a cor da gengiva. Algumas gotas de saliva também pularam da sua boca e vieram parar no meu olho. Ela falou no telefone com a Dona Fininha e fomos para a casa dela, na chuva, no escuro.  Não que eu pudesse ter um bebê naquele momento, não tenho nem ideia do impacto que seria. Mas a casa da Dona Fininha também cheirava mal, a café e a banheiro. E ninguém perguntou o que eu queria fazer. A Dona Fininha era mesmo muito magra, tinha os olhos fundos, dentes tortos muito espaçados. Eu ensopada, deitada num tapete, uma agulha de crochê esterilizada no fogão tentando furar a minha placenta, a dor que um dia eu achei que minha avó entendia. Em casa, febre, sangue, mais dor. Pedi para ir ao hospital, e minha avó quieta, sem me olhar nos olhos. Só me levou no último momento, eu já inconsciente. O médico retirou o que tinha sobrado e mandou chamar a polícia. Minha avó deu oitenta reais à enfermeira e tudo se resolveu.

Mas os meses seguintes foram piores. Vários deles sem trocarmos nem uma palavra. Um dia ela estava assistindo à televisão e eu cheguei na sala. Fiquei de pé atrás do sofá, encostada na parede. Era esse programa que ela sempre assiste às 17h. Um homem dizia que a criança não é apenas um órgão do corpo da mãe. A criança é um ser completamente separado, com DNA diferente – seguia –, e a mulher que aborta não é nada mais do que uma assassina. Ela se virou e viu que eu estava ali no canto, encolhida. Ficou um tempo me olhando com olhos de boi entediado. Olhos de boi indiferente à mosca que lhe pousa entre um olho e outro. Não disse nada, e o nada pareceu durar uma vida. Depois ela se virou novamente para a tevê.

Minha avó, dores nas costas, reumatismos, osteoporose, pernas roxas. Está em cima de um banquinho com as pernas tortas. O chapéu na cozinha junto aos panos de prato. Eu estou sentada na cama e vejo o banco pendendo para o lado. O banco se move, ela se reequilibra jogando o peso para o outro lado. Não quer se dar conta, está nervosa, precisa do chapéu. Agora minha avó está prestes a cair. Imagino aqueles ossos quase podres – como o perfume – se quebrando, explodindo como um carro que se choca com um caminhão-tanque, como os miolos de um assaltante. O banquinho vai se virar, tomba para o lado esquerdo, suas mãos balançam no ar, batendo asas como se voassem. Penso em não me mover, não quero me mover, mas já estou de pé ao seu lado e a seguro pela cintura. Desça daí, vovó, deve estar em outro lugar.

 

Já olhou debaixo da cama?


Julia Codo nasceu em São Paulo em 1983. É editora, escritora, roteirista e tradutora. Autora de Você não vai dizer nada (Nós, 2021).