“Dezoito de março”, conto de Raquel Laranjeira Pais

Deu à costa uma baleia com quarenta quilos de plástico no estômago. Dentro do estômago dela não vivia nenhum menino. Talvez a pistola de plástico de um menino. A pistola preta de cowboy, a pistola amarela de disparar água. Fazia calor aqui quando a baleia deu à costa, fazia calor e estávamos em Março, bem no início, antes do dia do pai, antes da mudança de hora, mas a tempo de nos lembrarmos da pistola de plástico do carnaval, a de cowboy, a de polícia, a de assaltante de banco, e ainda antes de nos lembrarmos da pistola de água, amarela e laranja e verde fosforescente do início do verão. Mucad Ibrahim não se mascarara. Talvez, mascarando-se, tivesse preferido ir de Catboy, o menino gato que de noite, salva o dia. Aos três anos, salva-se o mundo de pijama. O Catboy tem uma máscara de plástico também, e a roupa toda azul, de uns químicos que devem nadar na boca de um peixe palhaço que a bebe sem rir, saciado, ou na barriga de uma baleia, insuflada. Na barriga da baleia ele teria deixado a mão, na mão do pai, o pai teria usado a mão que tinha a mão do filho como arma contra a morte. Uma arma tão diferente, de um género que se pode encontrar, não na barriga de uma baleia, mas na de um tubarão, no caso triste e trágico de ser confundido com uma foca. Se a mão de Mucad estivesse na mão do seu pai, na barriga do tubarão estaria apenas um dedo seu e o braço inteiro do homem que lhe deu nome. Mas não havia tubarão, não desses, nem peixes palhaço, havia uma baleia e um homem com uma arma que não era de plástico. Se o homem que tinha a arma, a tivesse na mão e ela fosse de cowboy, de polícia, de assaltante de banco, preta ou metalizada, se o homem tivesse empenhado a arma para disparar serpentinas, acender cigarros, ou para a deixar servindo de calço na porta de um banheiro público, Mucad Ibrahim estaria agora a ver os Pj Masks e a comer pipocas, estaria com os dentes castanhos da capa do milho, estaria a sorrir à mãe que o acha alegre e vivaço, e a mãe de Ibrahim não estaria no chuveiro debaixo da água que se gastara de ser quente, a chorar, gasta de estar de pé, a chorar água e fezes e urina sem se dar conta, não bateria com tanta força as mãos vazias no chão de plástico, o plástico não se romperia inteiro e não lhe cortaria as pernas em pequenos cortes que ela não sente, o plástico não teria que ser jogado fora, atirado pela janela, com a máscara de Catboy, a bola favorita e um livro sobre escolher uma prenda para a mãe, pela mão vazia do pai, a mão tão vazia do pai. Não cairia no rio, do rio para o mar e no mar, não estaria dentro da barriga de outra baleia. Nessa baleia não estariam milhões de bolinhas de plástico de esfoliante dessa mulher sem nome e sem vida, de entre vinte e cinco e trinta anos, que um outro atirador sem arma de plástico, silenciara hoje na Holanda e eu não estaria aqui a escrever com uma caneta de plástico que fica sem tinta e vai parar à barriga de outra baleia que terá dezenas e dezenas de pistolas de plástico oferecidas por tias fofinhas aos meninos do Brasil para que brinquem de cowboys, de polícias, de assaltantes de banco, de presidentes da república, e não me doeriam as mãos de tentar agarrar as mãos do meu filho, todos os dias, todos os momentos, todo o tempo, pensando que se aparece um tubarão, que me leve inteira e o deixe, inteiro, tentando que o tempo pare e nos lembremos, nos lembremos todos de algo que nunca ninguém soube, e que era sobre armas e sobre plásticos e sobre baleias, e sobre palavras, e abraços e tudo o que não lembraremos mais depois de ter lido este texto, amanhã já não lembraremos mais, sobre o que havia no fundo dos homens que os tubarões deixaram vivos.


No dia 15 de março de 2019 houve um atentado numa mesquita na Nova Zelândia. Custou a vida a 50 pessoas, entre elas Mucad Ibrahim, um menino de 3 anos, que se perdeu do pai e do irmão na confusão dos primeiros disparos. O pai e o irmão sobreviveram. Soube o seu nome no dia 18 de março, o dia em que encontraram uma baleia com 40 kg de plástico no estômago, o dia em que houve um atentado na Holanda que custou a vida a três pessoas.


Raquel Laranjeira Pais nasceu em Lisboa, é psicanalista e escritora. Vive em Lisboa. O seu primeiro livro Trinta e três de agosto, será publicado pela editora Perspectiva em setembro de 2019. Publicou o conto “Ludovico” na Revista Pessoa, escreve habitualmente para o blog www.folhetimdaraquel.com e para o blog da Escrevedeira.