Dois poemas de Mariana Ruggieri

[sem título]

nas cozinhas quentes
a sola na areia
as tiras de couro
o barulho do barro
nas panelas na colher de pau
na garra do gavião no telhado
o barro o berro do bode
o mataburros o bezerro
as fiandeiras lendo a borra
com fé louça café
as frutas fervendo no tacho
a febre das compotas
no fim do dia as galinhas
sobem nas árvores
e ciscam o céu cirrus
cumuluninbus
contam as histórias
pelos feijões
as tranças no cabelo do milho
os nós dos buritis
o peso da palha vergando a casa
contra o elástico do sutiã
um carrapatinho na pele
miúdo micuim miguilim
revelar as picadas
e as miragens de água
as saudades do figo da índia
depois da ausência
retornar à casa
e medir o tempo
na crescida do maracujá
à altura da mandioca brava
na várzea do rastro do rio
nas órbitas do jatobá
a rapadura dissolvendo no dente
voltar à terra trezentos anos depois
e assistir ao mesmo juiz ser benzido
pelo padre que chega de moto
no campinho rural entre as traves
a bata branca arrastada no pó vermelho
os coletes dos times em cores primárias
no apito inicial vê-la indo arqueira
de encontro à boiada
a pisada no estouro o centauro
nunca desce do cavalo

[sem título]

quase todos os meus grandes planos
envolvem a possibilidade
de ficar na horizontal
uma biblioteca com redário
um galho descendo o rio

no inverno subo no ônibus
e sento nos degraus
da última fila
esticar as pernas
em direção a alguém
é pensar com as plantas
esticar as pernas no sol
é só um outro jeito
de passar o tempo

quando o meu menisco
escapou fiquei três semanas
sem dobrar o joelho
não quis viver para sempre
sentar em cima do motor
é lembrar de quem
dava de comer ao trem
se eu tivesse qualquer coisa
a ver com essas vozes
faria todo mundo pensar
num assovio


Mariana Ruggieri nasceu em 1988 em São Paulo. Escreve, lê e traduz. Publicou Anzol (selo treme~terra, 2018) e A bola é que são elas (selo treme~terra, 2018). Para as Edições Jabuticaba traduziu Bernadette Mayer e Eileen Myles.