“formiga”, poema de flora miguel

1.

estender a canga
intervir
no trajeto das formigas

por entre as dobras
de chita
travar batalha
minimalista

 

2.

A estudante de Pós Doutorado em Entomologia do Instituto Nacional de Pesquisa da Biodiversidade Florestal, Luana C., foi responsável por um estudo inédito que monitora o impacto de uma fábrica têxtil de larga escala na fauna das formigas

 

3.

desde a infância Luana C.
foi extremamente sensível

fazia dança aeróbica e clássica,
brincava sempre teatro
– atriz é porvir
desenhava histórias sobre
seres fantásticos
em pequenos recortes
de papel furta cor

a cada ocasião considerada especial
compunha música própria
letra e melodia
e se fazia um dia de sol e calor
coreografava a criação

costumava dizer que seria cientista
mesmo com a desenvoltura para as artes
em pura combustão

passava horas observando as galinhas
do quintal
conversava piu, piu, piá
no balanço de pneu
pendurado em enorme tronco de árvore

anotava suas considerações
num grande caderno de folhas mistas
tons de terra e céu
e encadernação feita pela mãe
com maquinário próprio
instalado na lavanderia da família

das formigas,
ao interagir forçosamente
mas ainda com o notório embaraço,
admirava a elegância:
folha que é escudo!
graveto que é lança!

 

4.

Luana C. morreu
já tem cinco anos
o rim perfurado
pela bala do milico
policializado

morreu e eu a procuro
procuro e a reinvento
que a atriz merece o melhor
papel
tons de terra e céu
pneu nunca de moto
parada em nenhuma autopista
prêmio Nobel:
melhor cientista

 

5.

a gente sem
escudo nem lança

sem cortina sem regente

o furo agudo estridente
no canto da nossa barriga

a polícia mata a gente
como a gente amassa formiga


Flora Miguel é jornalista, escritora e produtora cultural. Dedica a vida profissional a fazer circular a música autoral brasileira contemporânea.