Os livros de Fernando Haddad

Depoimento concedido a André Balbo, editor da Lavoura

Em um ensaio de 1889, dois anos depois de sair da cadeia e um ano antes de publicar O retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde escreveu que a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida. Para Wilde, tudo o que se encontrava no mundo não existia até ser inventado pela arte. O fog de Londres, por exemplo, só se tornou um fenômeno maravilhoso depois que poetas e pintores imaginaram a beleza de seus efeitos. Não fosse por isso, a neblina seria tão só… neblina. É como se a arte antecipasse a própria humanidade e seus significados coletivos.

A literatura, enquanto arte, também é imitada pela vida. Harold Bloom é enfático ao afirmar e reafirmar, ainda hoje, que Shakespeare é o inventor do humano. Para o crítico, sua originalidade e seu verdadeiro milagre artístico não estariam na representação da cognição ou da personalidade, mas sim em sua genuína criação: Hamlet, Lear, Macbeth, Cleópatra e outros tantos são exemplos extraordinários de novos modos de consciência. Modos de consciência com os quais nos deparamos a todo momento – seja na ficção, seja na política, seja nas intimidades casuais, seja sob o fog londrino.

Jorge Luis Borges, na tradição continental, talvez seja o grande representante da ideia de que a literatura antecipa a vida e as experiências. O portenho dizia que chegava às coisas depois de encontrá-las em livros e não por menos dizia orgulhar-se antes das obras que tinha lido do que de sua própria produção literária – tal era sua radical compreensão da escrita enquanto um episódio posterior e secundário à leitura, o que se refletiu de maneira memorável em toda sua obra.

Com tais ideias em mente, a Lavoura criou uma nova seção, nomeada Biblioteca de Babel. Neste espaço, a força e a influência a literatura serão vistas sob uma perspectiva diferente. A cada edição, convidaremos uma personalidade do meio artístico, intelectual ou acadêmico para falar um pouco sobre as obras e os autores mais marcantes em sua trajetória.

Nosso primeiro convidado é Fernando Haddad, cuja contribuição não poderia ser mais simbólica: um de seus autores favoritos é Jorge Luis Borges – e alguma dúvida sobre qual seu conto preferido?

Oscar Wilde tinha razão.

Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

É dos tempos de colegial meu primeiro contato com um autor que me marcou tanto, a ponto de até hoje relê-lo. Falo de Machado de Assis, particularmente do romance Memórias póstumas de Brás Cubas, que, para mim, é seu melhor. Voltei a Memórias póstumas recentemente com minha filha, nas férias de janeiro. Um livro desnorteante, até mesmo pela época em que foi escrito. Notável como alguém teve, digamos, a ousadia de apresentar um livro naquele formato. A maior memória que tenho desse texto é o espanto do primeiro parágrafo (“Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte…”). Foi tão significativo, que eu duvidei que o autor pudesse sustentar aquela altitude até o final do livro, e não parei de ler esperando um momento de vacilo, que não aconteceu. Fui tomado por uma certa perplexidade com a ironia fina, do título ao último parágrafo, e com o que ela significava.

O processo, Franz Kafka

No caso particular deste livro, meu sentimento é curioso. Por muitas vezes, tinha vontade de rir durante a leitura, apesar de ser absolutamente tenso. Depois vim a saber que o próprio Kafka ria quando fazia a leitura em voz alta. E eu entendi perfeitamente o motivo disso: de fato, ele conseguia descrever de forma angustiante situações tão incrédulas que, muitas vezes, resvalava no cômico, embora o aperto no peito fosse uma decorrência natural da leitura. Na minha visão, existe uma ambiguidade entre o sufocante e o cômico que perpassa várias passagens do texto, o que não era comum em outros leitores com quem eu conversava, que só viam n’O processo tensão e tragédia. Para mim, Kafka é um autor cuja atualidade se faz notar até hoje, ainda que, na minha concepção, já tenhamos vivido tempos mais kafkianos no passado, como prenúncio do que o século XX nos reservava. Acho que o período stalinista e o período dos governos autoritários e totalitários na Europa – Espanha, Itália e Alemanha – foram mais kafkianos.

A revolução dos bichos, de George Orwell

Embora pudesse citar 1984, gostei e ainda gosto mais de A revolução dos bichos. Na época em que o li pela primeira vez, cursava o mestrado e já era um crítico do sistema soviético. Nesse sentido, o livro me cativou de pronto, em função da representação do comportamento falacioso de uma parte daqueles que anunciavam um mundo novo, mas de fato estavam em buscam de vantagens bastante palpáveis, por assim dizer.

Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez

Um tremendo livro. Aquele círculo, aquela espiral de repetição… uma história que não sai do lugar, embora esteja permanentemente se mexendo, como se fosse um mal que infinitamente se repete, no nome dos personagens, nos eventos trágicos. Eu acredito que o fenômeno latino-americano foi maravilhosamente representado nesse livro.

Ficções, de Jorge Luis Borges

Borges é um dos meus escritores prediletos. Sou apaixonado pelos contos, particularmente. É uma literatura bem diferente daquela de García Márquez, de tal modo que não sei se é possível classificá-lo como um autor latino-americano, como se costuma fazer, porque talvez ele seja muito mais um autor universal. Me fascina sua erudição, sua capacidade de mobilizar saberes atemporais para retratar situações modernas – Borges podia citar de Spinoza até um filósofo grego para falar de uma angústia contemporânea. Lembro de ler “A Biblioteca de Babel” em voz alta para o meu filho, em Brasília, porque fiquei alucinado com esse conto em específico, e precisava mostrar aquilo de qualquer jeito. Tenho bastante coisa de Borges em casa, porque todos sabem que gosto e acabam me dando de presente.

Budapeste e Leite derramado, de Chico Buarque

Pensando em autores contemporâneos, os últimos livros que li com mais interesse foram esses dois do Chico. E cito esses porque, na minha visão, Budapeste tem algo de Borges, e Leite derramado tem um quê de García Márquez e de Machado de Assis. As referências talvez sejam um pouco remotas, mas de alguma forma eu as notei, o que fez com que eu me apegasse bastante a eles.


Fernando Haddad é professor universitário, ex-ministro da Educação e ex-prefeito de São Paulo.