“Para um menino na guerra”, conto de Leila Guenther

Tarik, eu me lembro de você. De como era frágil, de como tinha medo. Eu também era frágil, e tinha medo. Dois terços de nós, ou mais, eram assim. Você tinha olhos grandes, que deveriam ser bonitos hoje, mas que na época pareciam desproporcionais ao tamanho do rosto, miúdo e magro. Você chorava quando, sentado sobre uma das pernas, elas formigavam. Isso era imperdoável. Chorava quando lhe diziam para que o fizesse. E todos riam. Você não tinha nem o perdão ou o azar de ser estudioso. Se fosse, pelo menos para algumas coisas não o teriam desprezado. Mas sentava-se perto da janela e ficava distraído olhando através dela com o olhar oscilando entre o vazio e o sonho. Quando a professora pedia que continuasse a leitura de onde alguém tinha parado, você nunca sabia onde estava. E, quando descobria, gaguejava, se enroscava em murmúrios incompreensíveis, pálido como os que nunca iam para a praia nas férias. Do que mais me lembro é de sua voz. Som e cheiro são coisas de que nunca me esqueço, embora não consiga descrevê-las. Que dizer de sua voz, se não que era uma melodia tocada um tom acima? Você não devia ser pobre, a julgar pelo carro com que vinham buscá-lo. Tinha carro e por isso nunca um estranho o pegaria no caminho da escola e enfiaria os dedos em partes suas que você sequer conhecia direito. Pelo menos não era menina, e não tinha borrachas cor-de-rosa com cheiro de morango que eram sempre roubadas por alguém que o ameaçasse de calúnia caso o furto fosse delatado. Mas tenho certeza de que sofria por ser o último escolhido para dançar a quadrilha nas festas juninas. Assim como nas aulas de educação física. Porque pertencia ao grupo daqueles a que faltavam a coordenação, a beleza e a graça de movimentos das crianças felizes. Aos que não possuíam um corpo com que se defender. Pelo menos não tinha amigos que o diminuíssem. Não tinha amigos, em absoluto, o que deveria facilitar muito a compreensão de sentimentos confusos. Pois como entender que se possa, deliberadamente, humilhar um amigo? A tirania das crianças: jamais compreendi quem tem nostalgia do passado.

No fim de 1984, disseram que você ia embora. Ia para o Líbano, que eu sabia vagamente ser mais distante do que a Argentina e mais perigoso por causa de uma guerra. Um conflito que durava mais do que sua existência inteira. Mesmo assim, nem lhe desejei boa sorte.

Faz quase trinta anos e eu ainda me lembro. Na verdade eu me lembro todos os dias. E lembro que passei muito tempo imaginando que você tivesse partido por causa das coisas ruins que lhe aconteciam na escola. Pensei que era porque ninguém tivesse feito nada contra os seus inimigos.

Um ano depois de sua partida, a diretora da escola, numa reunião de pais – contou minha mãe –, disse que você tinha morrido. Não da guerra, mas de um câncer silencioso, desconhecido. Pensei que provavelmente tinha sido engendrado aqui. E que eu não pudera evitar. De repente se abriu como uma flor raivosa na violenta primavera. Foi o que soube: em questão de um mês, tudo estava acabado. Ouvi ainda o resto: o tratamento brutal, o desespero da última tentativa. Foi a primeira vez que eu ouvi falar tão concretamente na morte.

E eu sobrevivi.


Leila Guenther é autora de Viagem a um deserto interior (Ateliê Editorial, 2015), selecionado no Programa Petrobras Cultural e finalista do Prêmio Jabuti. Participou de diversas coletâneas de contos e poemas e realizou edições comentadas de obras da literatura brasileira e portuguesa.