Quatro poemas de Humberto Pio

Corrente

musa grávida na calçada
caminha ao meu desencontro
ajeita a barriga pra mim, penso
marchinha que grita em seu corpo
na ponte aérea do olhar
eu pasmado, ela constrangida

ao invés do sorvete uma sacola
duas cervejas, castanhas de caju
ato contínuo tomo o elevador
enquanto memoro clavículas
o short verde dando bandeira
lembro que não fui à mercearia

domingo de trabalho árduo
ausência o que os olhos alcançam
colar de jasmim, auspício inaudível
a banda que nunca ouvi no rádio
“we chase misprinted lies
we face the path of time”

a labuta, que luta, intervala
enfrento uma noite de sono
segunda já vai tarde, arde
um número desconhecido, chama
presumo cobrança ou telemarketing
um coágulo: pra não ficar na gaveta

Destino

Carmen Heparina era só fogacho,
vivia na base da isoflavona de soja
agendou consulta com o Dr. Pedro Noia,
que após cuidadoso exame bimanual
constatou uma vaginite atrófica moderada
menopausa batendo à porta: o climatério ficou tenso!

Iniciou um tratamento de reposição hormonal
que resultou num coágulo venoso funesto
para o qual não houve prognóstico onomástico.

Jargão

croquete, boquete, enquete, claquete, basquete, chiclete…
quando me vi poeta, apertou o torniquete:
que diabos será uma plaquete?

virou até uma esquete:
poema fofo vendido na calçada,
adorno de parede pinterest.

descobri no dicionário que plaquete é plaqueta.
o elemento sanguíneo protagonista no coágulo?
nada: um livro pequeno, de poucas páginas.

Embaraço

de um tempo presente que pressente o futuro
nove mil e tantos dias esperando um coágulo
setecentos e setenta e um amigos, menos você
cento e treze dias entre o anúncio e a renúncia

quatro e quarenta quando toca o telefone de novo
três cafés depois que o teto do banheiro despenca
dois transes transitivos e quando menos se espera
mais, o sutiã com fecho frontal para amamentação

sincroni-
cidade:

um cotonete para higienizar as orelhas de abano


Humberto Pio nasceu em Mantena, nas Minas Gerais, em 1972. Desde menino desenha e escreve. Adulto, mudou-se para São Paulo e se fez arquiteto, sem abandonar o poeta. Coágulo, seu primeiro livro solo, foi vencedor do Prêmio Maraã de Poesia 2018 e será publicado pela Editora Reformatório. Os poemas inéditos “Corrente”, “Destino”, “Jargão” e “Embaraço” foram escritos no calor dessa premiação.