“Samango não”, conto de Adriano B. Espíndola Santos

Meu vô, caboclo do sertão, tinha ojeriza a samango. Nada de alisado, passar a mão na cabeça de quem quer que seja: “Homem que é homem tem de buscar o seu destino!”. Julinho, quando caiu doente, ligou o alerta. O velho se estrebuchou para entender e aceitar.

Nas brenhas, doença é luxo; nenhum ser pode se queixar de dor nas juntas, de enxaqueca, por exemplo; isso é coisa de gente grã-fina. Vozinha trabalhava de sol a sol na fazenda do Delegado Falcão. Lá, amparada por uma outra criada, a Ricardina, dava conta de tudo, da limpeza da casa ao brilho das louças. O vô, por designação do destino, um vaqueiro arrochado, de correr e enfrentar as pontas dos punhais do mato seco. Não conto as vezes que chegou imolado, coberto de sangue. Decerto, anunciando a dureza da vida; vencer ou morrer!

Julinho, com dez anos, acabrunhado por acolá, não queria comer uma papa sequer; até as subidas nas árvores, o reboliço no chão batido, de levantar poeira e serenar o sol, não era mais distração. Vô, então, fazia as vezes de pai, porque Marianinho, o senhor meu pai, morreu de acidente justamente de cavalo, na lida diária. Passou por tanto – vó o entregou à Maria, no dia do seu nascimento –, mas não resistiu à força do cavalo recém amansado, o Trator. Hoje, o cabrunco assassino jaz a sete palmos do chão.

Não foi de imediato. Perdeu o gosto por sair de casa, ver uma frestinha de sol alumiar. Passava os dias com a cara para o nada. Quando muito, pegava um copo d’água, ia ao buraco para defecar, com os porcos – sem reclamar. Outras vezes, urinava ao pé da cama. Mãe não reunia forças para brigar. Ignorar a situação já não fazia sentido. O vô mesmo, matuto bronco, imaginava que tinham botado quebrante; preparado a nossa morte lenta. Suspeitava de Manel Salustino, um velho vaqueiro espezinhador, com fama de feiticeiro; fazia parte dos Vieira – assim, mantinham viva a rixa familiar. Interrompe-se o cessar fogo.

O menino definhava, e mãe o acompanhava. Vô foi tomar satisfação com Manel. Resolveram na ponta da faca – não se sabia que diabos era diplomacia. Um disse que a acusação era injusta, maldita; o outro ordenou que desse um jeito na saúde do seu neto, senão um dos dele morreria. A jura, definitivamente, não era da boca para fora. Vô lascou o facão, que quase arrancou uma das pernas do sujeito. Manel, caboclo de pontaria, arremessou uma peixeira que cravou no braço esquerdo do vô. A vizinhança apartou, por sorte, dois homens determinados e impassíveis ao fim.

Sem tino para essas coisas, estava disposto a mudar o rumo da prosa secular. Não cria no sobrenatural – algo inconcebível para o povo lá de casa –, então, mais fácil de entender que meu irmão sofria uma anormalidade natural; o seu corpo não regulava bem. Tomei-o pelo braço, numa manhã de quinta-feira, sol a pino, e fomos ao único posto das redondezas, a duas léguas. Com uma mão aprumava o guidom, com a outra levava-o no meu colo, no quadro da bicicleta. Dois arriados em casa: teria de fazer algo, urgente!

Na chegada, Dr. López nos atendeu com um sorriso no rosto: “Entón serán os primeros a serem atendidos!”. De cara, não entendi o jeito de falar esquisito; cantado. Uma moça jeitosa se achegou e falou: “Ele é cubano. Nosso único médico. O melhor que tivemos aqui!”. Assustado, entrei – com meu irmão ainda sonolento. Dr. López o examinou inteiro, e o pequeno se bulia dando sinais de vida. Declarou, enfático: “Depressão!”. Perguntou sobre fortes traumas. Logo associei à morte do pai, há dois anos exatos. Receitou umas medicinas naturais, de plantas da região, e outro fármaco que, por sorte, havia lá, e resolveu acompanhá-lo mensalmente.

Notável a evolução do menino, retomando a rotina, pouco a pouco. Mãe melhorou também, de lambuja – dois presentes. Dr. López acertou em cheio. Passei a pesquisar na biblioteca municipal e aprendi a lidar com isso. Estávamos no caminho certo.

No retorno, a notícia: Dr. López teve de voltar a Cuba. Desolados, procuramos uma explicação; pediram para esperar, que o novo governo elaborava um plano para compensar as perdas. Passaram-se meses, anos, Julinho definhou, progressivamente. Morreu nos meus braços, no começo deste ano; um fiapo de gente. Nossa luta desandou. O vaqueiro Espedito, o senhor meu vô, também não pega uma colher com a mão. Mãe dá caldo em sua boca, em doses pequenas, para não se engasgar.

Ninguém aqui é samango. Invisíveis, talvez; ou nunca reconhecidos como gente.


Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Autor do romance Flor no caos (Desconcertos, 2018). Advogado humanista. Mestre em Direito. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto.