Íris Negra (Trevo, 2020) é um romance que se desenvolve tendo dois planos narrativos. Um deles, no presente, dá conta de uma história de amor triangular pouco convencional vivida por uma paulistana em temporada em Nova Iorque. O outro se desenvolve como metaficção historiográfica e aborda a vida e a obra da pintora norte-americana, Georgia O’Keeffe, e de seu marido, o fotógrafo Alfred Stieglitz. As duas histórias correm em paralelo e uma atribui sentido à outra. O que há de curioso, além da história de amor central, é que o leitor é convidado (mas não obrigado…) a interagir com os conteúdos artísticos produzidos pela pintora em questão e que estão disponíveis na internet. Trata-se de uma exploração cujos limites o leitor dará.
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Cíntia entrou no salão principal. Aquela parte da exposição era dedicada às flores de Georgia. Sabia que a artista se voltara ao tema em 1918 e até o ano de 1932 havia pintado mais de duzentos quadros em que as retratava. Neles, rosas, camélias e girassóis recebiam o mesmo tratamento e abordagem que flores mais raras, como as orquídeas exóticas ou as íris negras. O copo-de-leite, que havia chamado sua atenção em uma floricultura em Lake George, foi uma das flores que ela mais pintou e acabou associado à sua imagem, para o público. Miguel Covarrubias, artista mexicano, o usou em uma caricatura que fez da pintora, Our lady of the Lily, publicada no New Yorker, em 1929. Era em preto e branco. O pescoço longo, o rosto e o corpo com linhas retas e formas quase geométricas, os cabelos presos, a cabeça e a orelha com linhas curvas, um copo-de-leite nas mãos. Linhas exatas no corpo e sinuosas na flor. A precisão na artista e a suavidade no objeto representado… Observou as mãos da pintora. Os dedos angulosos em interessante composição com o talo do copo-de-leite e a curva precisa do cálice. A composição era bonita e curiosa, simpática, apesar de sóbria, bela em sua robustez…
Pensando ainda
Georgia pensava nas palavras de Kandinsky. Ela havia relido a introdução de seu livro no dia anterior. Gostava de suas ideias. Por vezes lemos textos que poderíamos ter escrito, tamanha a identidade que criamos com o seu conteúdo. Também ela achava que a arte é um pão espiritual. É claro que ela se adequa à fome e ao paladar de cada um, às necessidades de cada corpo e ao vazio de cada estômago. Mas era um alimento tanto para o espírito de quem a aprecia quanto para o de quem a produz… Georgia era impulsionada por uma necessidade intrínseca ao seu ser e cuja motivação lhe era obscura, à semelhança do que pontuara o russo nas suas anotações. Por que, afinal, não poderia viver sem pintar? Não sabia. E por que pintar o que pintava e a maneira como o fazia? Outro mistério, que não poderia nem queria resolver. Sabia apenas que era um autêntico encontro com Deus, uma maneira de se proteger da vulgaridade e do aniquilamento. Gostaria que todos experimentassem as emoções que a haviam dominado na confecção de cada pintura. Eram sentimentos que a linguagem, por vezes, era incapaz de exprimir com clareza e objetividade. Eram ecos de um tempo ainda não completamente vivido e de uma alma ainda em expansão e, por isso, dominados pelo desconhecido e carente de definições. Queria momentos de profunda lucidez, mesmo que isso provocasse dor e sofrimento. A experiência com a arte tem, por vezes, um quê de masoquista, mas é impossível viver plenamente sem essa dor, que faz sangrar feridas ocultas e desconhecidas.
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Ela era a única pessoa na exposição e o lugar parecia maior por estar vazio. Deixou que as suas pernas a conduzissem em meio àquele jardim. Sentia-se um pouco Alice entrando em um mundo de maravilhas. Os passos ritmados e barulhentos no assoalho de madeira iam seguros e sem muito método.
Parou na frente de uma pintura com data de 1928. Two Calla Lilies on pink. Eram dois copos-de-leite vistos bem de perto, as extremidades das folhas ausentes da pintura. Elas não cabiam naquela focalização tão próxima de sua inteireza. Era belo e poético. As pinceladas cinza-azuladas conferiam ao cálice uma espécie de movimento e ele parecia envolver – embrulhar, talvez – a espádice amarela e ereta. Os tons rosados que serviam de background para a dupla conferiam suavidade e ajudavam a criar harmonia e movimento. Elas estavam muito juntas, mas tinham existências independentes. Separadas, mas juntas; juntas, mas separadas… Era de uma tranquilidade perturbadora. Tudo naquela pintura era serenidade, mas, ao mesmo tempo, havia a rigidez do copo branco com as suas curvas e formas quase dramáticas e a espádice vibrante emergindo imponente. Jogo dialético entre a suavidade e a robustez. Cíntia ficou parada algum tempo em frente a ele. É… Decididamente, não era uma pintura com propriedades científicas. Havia ali algo de muito pessoal. O que teria levado Georgia a elaborar o retrato de duas flores tão plácidas e tão intensas ao mesmo tempo? Como a virilidade e a delicadeza podiam dividir espaço? Ficou algum tempo parada em frente à tela. Era mesmo um deleite para os olhos.
Alguns passos. Os pés tocando o piso com cuidado podiam ser ouvidos um a um. Parou. Estava, agora, face ao Single Lily with Red, datado de 1927. Outro copo-de-leite. Desta vez, ele era visto de fora e de um ângulo mais baixo. O cálice era o elemento enfatizado. Não era possível ver a espádice, apenas o copo branco que se impunha, esguio e imponente. Por trás, uma folha verde, enorme, quase desproporcional, e o pano de fundo vermelho como sangue. Era delicado e agressivo aomesmo tempo. Bem diferente do anterior. O estilo era o mesmo, mas exalava outro perfume… pensou, sorrindo internamente com o trocadilho. Esse tinha cheiro apimentado e era muito dramático. Gostaria de ter pintado uma flor como aquela… Pensou em Constanza e achou que a pintura combinava com ela.
Mais alguns passos. Abstraction White Rose, 1927. Lindo. Olhando de perto parecia um redemoinho macio. Os tons de branco e cinza – muito delicados – formavam um movimento extremamente envolvente. Parecia saltar da tela ou poderia atrair perigosamente o seu observador para dentro dela… Lembrou-se do olhar de O’Keeffe encarando a lente da câmera. Pensou, mais uma vez, como seria possível que ela não estivesse mais entre nós se parecia tão viva em todos os lugares… Era como se cada tela tivesse uma voz própria, sentia-se olhada e, por instantes, teve a certeza de que fantasmas silenciosos observavam a sua contemplação muda. Chegou a olhar para os lados. O salão vazio. O silêncio perturbador. Olhou novamente para a flor, certa de que era um privilégio estar ali. Ficou por longos segundos olhando, até que teve a estranha sensação de estar se perdendo em meio aos seus movimentos e duvidou, por instantes, que aquela tela, um dia, fora completamente branca. Continuou olhando… E a rosa deixou de ser rosa para se tornar apenas cor e movimento e então ela pode ver outras formas, entrar por caminhos nunca antes percorridos…
Deu alguns passos tentando fugir daquela tela que a aprisionava de maneira desconhecida. Colocou-se diante de Black Iris, também de 1927. Observou. Uma íris negra. Os tons escuros predominavam. Era composta por uma profusão de cinzas e lilases. O roxo e o negro, talvez por influência das outras cores ali presentes, pareciam tingidos de uma púrpura profunda. Georgia gostava de misturar tons e criar cores particulares, quase únicas. Mas era curioso, pois, apesar dos tons fechados, ela não estava diante de uma imagem disfórica ou triste. Ela era calorosa e muito viva. Quente. As cores lhe pareciam livres de estereótipos. A parte central era de um marrom muito escuro, quase vinho, e, em composição com o negro na parte inferior, dava a impressão de algo profundo, muito profundo. Fixou o olhar, como se quisesse ver o que havia lá dentro, bem no interior daquela flor… Ficou olhando para aquela profundidade ilusória, incapaz de desviar os olhos. Não saberia dizer no que pensou naqueles instantes. De início, ela parecia oca e vazia, depois quase zonza e sem rumo. Tentou fixar os olhos no entorno, nas pétalas que rodeavam aquela espécie de orifício. Pareciam leves e macias. A forma era curiosa. As pétalas internas formavam uma espécie de losango estilizado, as outras, por fora, se abriam em flor. Ela estava diante do próprio sexo, que se travestia da rara íris negra. Mas, ao mesmo tempo, o que encarava se perdia em meio ao referencial, para se tornar apenas um emaranhado de cores em perfeita e harmônica combinação. O desenho que as tintas formavam sobre a tela branca era, afinal, pura abstração, como toda pintura é. Um convite ao exercício mental e intelectual. E ela sentia-se livre para ver ali uma flor exótica e quantas outras coisas a sua experiência permitisse, convidada que estava a reorganizar sua maneira de perceber o objeto e a sua criação. Naquele mesmo instante, ela se deu conta de que as flores que pintava eram completamente ausentes de sentido e teve a certeza de que vivia uma grande mentira.
Exausta
Georgia sentia-se zonza. A cabeça parecia inchada. Grande. Maior do que o normal. Não conseguiria responder a qualquer pergunta que a fizesse pensar. Não tinha forças. Não. Não queria água, café ou chá. Queria apenas descansar. Deitou-se no sofá próximo. Esticou-se. Fechou os olhos. As cores todas na sua mente. Os braços doloridos. Ficou assim. Era disso o que precisava. Ficar quieta. Dormir um pouquinho…
Adriana da Costa Teles é pós-doc em Literatura Comparada pela FFLCH-USP e doutora em Teoria da Literatura pela UNESP. Autora dos livros Machado & Shakespeare: intertextualidades (Perspectiva, 2017) e O labirinto enunciativo em Memorial de Aires (Annblume, 2009).