[sem título]
prefiro me construir
assim
eternamente
uma estrangeira.
sequer essa casa
eu ouso chamar de minha.
veja:
não é a casa
que não pertence a mim.
é meu corpo
que não pertence à casa.
[sem título]
retirar a máscara do tempo
ver que, por baixo, nada,
nenhum outro rosto
além do meu.
querer desconhecer o que já é
tão sabido, querer ferir o que é
meu sangue e jorra.
desfigurar os dias que se dizem
plurais, mas não e nada
além de hoje: eu, sentada,
diante do espelho,
procurando outro tempo.
levante
1.
eles chegaram
sem dizer que vinham.
dizem que foi aí o começo
de tudo.
eles chegaram
e nós sabíamos:
a linguagem da água
é inconfundível.
a maré recuou para não sermos
uma espécie de destino,
eles ainda cuspiram até aportar e,
depois, usaram nossas lágrimas
para refazer o caminho da volta.
eles chegaram
e trouxeram vários tipos de morte.
2.
eles chegaram
sem dizer que vinham.
insistiram. cava-se o poço até
não haver mais o que explorar.
eles chegaram
e nós sabíamos:
a linguagem do vento
é inconfundível.
o céu se enfureceu com a invasão,
com as feridas que eles sempre abrem
quando chegam. depois, só o barulho
de bombas.
eles chegaram
e as formas de matar já eram outras.
3.
eles ainda chegam
sem dizer que vêm.
não desistem
da barbárie.
eles chegam
e nós sabemos:
a linguagem da terra
é inconfundível,
treme. pelo avançar
dos pés
dos cavalos
das viaturas
do perigo.
eles ainda chegam
e se especializaram em todos
os jeitos de matar.
não é apenas o nosso território que desejam,
são nossos corpos
hoje, espalhados pelo mundo.
4.
nós sabemos,
aprendemos com eles
como afiar as facas.
Lubi Prates é poeta, editora, tradutora e curadora. Tem três livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018); o último, contemplado pelo ProAC e a ser publicado nos Estados Unidos, Colômbia, Argentina, França e Espanha, além de ter sido finalista do Jabuti e do Prêmio Rio de Literatura. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetAs, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018). É sócia-fundadora e editora da nosotros, editorial, e editora da revista literária Parênteses. Dedica-se à ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. É doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano, na Universidade de São Paulo.