três poemas de sofia a. carvalho

Ontem como agora

Se num segundo isto
ontem como agora
dizendo

vem devagar como quem
amanhecendo
espera
um nome sem lugar
a luz
atravessando cada órgão
apoteótica
um fim qualquer
e um corpo para viver
mesmo se
árvore sangrando
e a sede
com que entro aí

agora
não chega inteiro
o dia
natureza morta comparando
a palavra
a última distância.

 

O segredo de Orfeu

espera
já mo tinhas dito
e às estrelas também

como se o sol rodando
assim a cabeça
volta e meia ao mundo
um verso
e a promessa de um nome
que não sei cantar

mas
todos os anos avanço
catecúmena
à noite destinada

eclipse de asa recuando.

 

Ainda

Em vez do corpo definitivo
isto ou aquilo
sob um espaço delicado

– força do poema a abrir
violentamente o peito

mas
hoje há quem chame
órbita secreta
quando
tu e as minhas mãos
abrindo ruas
afinal

noite urente sem eixo
nascendo ainda.


Sofia A. Carvalho é doutoranda no Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa e bolseira da FCT. Em 2019, publicou, em colaboração com o músico electroacústico João Castro Pinto, Hiante, um livre-affiche com a chancela da editora helvética Grimaces Éditions.