1
(do livro Depois da água)
Ter um tronco na cabeça um rombo
um olho
Ter um troço na cabeça
um troco um espaço destroçado.
Ter um osso na cabeça um oco
ter uma dúvida ao lado.
Ter um filme rodando na cabeça
um fim um fundo
um falso mundo moribundo.
Ter laços trocados entre a cabeça e o abraço.
Ter braços na cabeça
ter nasgos de fundos-musgos
nacos de lusco-fusco e ter
fuscas na cabeça fornicações migalhas
ações e maravalhas e estrias
Ter mais-valias na cabeça
ter tantos e tão tontos
e poucos migalhos.
Ter alhos na cabeça e cruzes de cabeçalhos
Ter cacarecos e bugalhos e búzios e espantalhos
e espasmos de exasperações.
Ter modelos de ações na cabeça
e títulos e ovários
ter otários na cabeça
e altos salários e concursos e minúsculos de músculos
entesados.
Ter tesões na cabeça testões arremessados
para o outro lado Ter baralhos na cabeça
embaralhados barulhados
embrulhados e burlados.
Ter buracos na cabeça nacos de nadas
tostões e namoradas Ter nados lodos
nenhuns e nuvens.
Ter nuvens na cabeça que passam
ter passados Ter passos na cabeça
passadas em calçadas Ter jogos de sapatas
Ter trapaças ter traças na cabeça e braças
Ter um ás e um és
Ter is e vis-a-vis à vista da cabeça
Ter vastos vestígios de martírios.
E ter mares na cabeça e bulevares de piratas
e baratas e baratas
e belvederes de onde se pode ver o que
se ouve e se Ave só dentro da cabeça.
2
(do livro Desconjunto)
Ali
onde o mato alimenta-se de temores
guardo meus inventos, façanhas.
Façamos as escolhas: a rua faiscante corta os olhos
onde elaquela namora os tropeços e os trovões.
Moedas a desabitam
a engolir suor.
Enrolou-se na saia vermelha, mora em segundo andar.
Eu cá preferi um mistério dentro
em negror
de mato.
Coelhos caçoadas
grilos morcegos: cada qual canta a seu jeito.
Às vezes reúno a orquestra
para mostrar minha nova invenção:
invento do medo do arbusto calabouço.
As folhas imensas eu resguardo. Deito-me. À noite chorei:
meu travesseiro eram pó de pó de vento.
Caibo em cada parte onde escolho um tamanho −
a brincadeira é costurar cadáveres.
Agora é olhar as fotos: vejo ela com feridas na perna
a equilibrar sapatos de agonia.
Então estou melhor: visto quinquilharias da mata
e a cada dia invento outra
outra canção.
Então grilos morcegos
caçoadas
arranjos: abelhas ao fundo
um piano, no bordel.
3
(do livro Squirt)
É o meu mar que você cheira, desavergonhado, enquanto massageia as pernas com óleo, fingindo que não vai mais mergulhar a ponta da sua língua no meu segredo. E adia o seu deserto, carregando o peito aberto e bom debaixo do sol forte. E de repente você cruzou oásis e agora penumbra com sua língua essa noite azulada do meu dentro. Afasta com as mãos serenas as superfícies pelas quais passou, para se refrescar, translúcido, e sua com seu sol salgado sob os meus tremores, e pergunta se estou bem, mas não sei responder a esse estado assim absorto nas miragens. Vejo que é um sol, o seu, de irradiações lilases que se alastram pelas minhas extremidades, e também se proliferam de manhã, no meu peito agora dissolvido e bom debaixo do seu sol. O dia nasce e você passeia as pontas dos seus dedos na minha face, suado e satisfeito por ter conseguido me salvar do seu naufrágio.
4
Meu pai e Miles
têm em comum
apenas o trompete,
além
de serem homens.
Soam
os seus músculos
pelas frestas,
nos plenos pulmões
atrevidos.
Meu pai e Miles,
mistérios
para mim, menina
que musicava
o momento
apenas
com palavras,
porque não tinha
instrumento.
Meu pai, um baque
da porta fechando:
a pasta no chão,
os passos fortes
no vão da escada.
Meu pai
não amava Miles,
mas Chet Baker,
o grito diminuído.
Um foragido
dos seus próprios
ângulos imprecisos.
Aprendi a amar
o grito agudo,
pois preciso
de amarelos
andando pela casa.
Sinto o teor
estremecido
das estrelas
(às vezes
adormecidas
no porre de um Chet).
Por isso,
com as palavras,
busco o ângulo
do grito,
na urgência
de acordar
as estrelas
contra o mau governo.
Com Miles,
sem meu pai,
moldo a minha trompa,
meu próprio
estampido.
Telma Scherer é poeta e professora de literatura brasileira na UFSC. Formada em filosofia e em artes visuais, com mestrado e doutorado em literatura. Publicou o romance Lugares ogros (Caiaponte), o híbrido Entre o vento e o peso da página (Medusa), e cinco livros de poesia, entre eles Desconjunto (IEL), Rumor da casa (7 Letras), Depois da água (Nave) e Squirt (Terra Redonda), semifinalista do prêmio Oceanos.