Carlos Cardoso lavra o campo semântico da poesia em Melancolia

Por Paula Dume

Não é preciso fechar as janelas de casa ou ficar recluso em um local taciturno para ler Melancolia, novo volume de poemas de Carlos Cardoso, lançado em outubro pela editora Record. Pelo contrário, deve-se escancará-las e explorar a obra a céu aberto. O poeta carioca transforma a melancolia em um personagem fértil, vivo e pulsante.

Heloisa Buarque de Hollanda, que assina a orelha, confidencia ao leitor, logo no segundo parágrafo de seu texto, que iniciou a leitura pronta para mergulhar em um universo marcado por “tristezas vagas, profundas, resistentes”. No entanto, ressalta que não localizou traços nem “sonoridades melancólicas” como previra.

Neste livro, Cardoso lavra o campo semântico da poesia e do tema-sentimento sob novo viés. Não há muletas ou próteses para disfarçar a melancolia, presente em sete dos 39 poemas. O poeta não pretende suprir a ausência que ela provoca com um preenchimento ilusório.

“Floragem”, poema de abertura, é uma espécie de gazebo pelo qual o leitor deverá passar antes de chegar aos versos daquele que dá título ao volume. Em “Melancolia”, devidamente armado com uma folha de papel e uma caneta, o escritor aguarda o visitante para disparar sua centelha (“Para esse livro/ não escreverei/ o que é fácil de entender/ o que é fácil de ler/ o que é fácil de não ser/ o que realmente sou”) e algumas estrofes depois assumir a guarda da obra (“Esse livro sou eu!”).

Além da melancolia, o autor utiliza o elemento mineral para mostrar que a reflexão se dá por meio da pedra. Rígida e aparentemente imutável, ela corre, brinca, se fantasia, ama, padece, cura e abandona assim sua condição inanimada. A relação de Cardoso com o mineral não é recente e foi transposta em Sol descalço, seu primeiro livro, publicado em 2004. Nele, o escritor dedica o poema “No meio da pedra” a Carlos Drummond de Andrade em alusão ao “No meio do caminho” do autor. No poema, ele afirma que “no meio da pedra tinha um caminho”.

Segundo o acadêmico e crítico literário Antonio Carlos Secchin, autor do posfácio do livro, tem-se frequentemente uma pedra “em movimento e em metamorfose”. Secchin destaca que a matéria em expansão nas vidas vegetal e animal contrapõe-se à condensação e contenção da matéria mineral, “sobretudo nas pedras estrategicamente situadas em várias partes do livro”.

No poema “Pedra”, Cardoso esclarece que só o que é pedra o atrai, porque “só o que se retrai se expande”. Já em “O rolar da pedra”, ela assume uma identidade entorpecente. O mineral percorre o Rio de Janeiro e, infantilizado, sofre desde seus primeiros passos executados no morro até chegar ao Leblon e ser penalizado já em idade adulta. 

A pedra também surge na capa do livro, concebida pelo pintor e escultor Carlos Vergara. Os versos iniciais de “O pato de pedra”, dedicado ao artista, reproduzem sua instalação. O poema sintetiza ainda dois dos principais temas abordados em Melancolia – a sombra do poeta nas duas pedras, e a melancolia encabeçada na escultura – e personificados em um retrato do escritor. 

A conexão de Cardoso com as artes plásticas já era notada em Sol descalço e nas pinturas inéditas feitas pela artista plástica Lena Bergstein para os poemas de Na pureza do sacrilégio, publicado em 2017. Arte essa que faz com que os tempos passado, presente e futuro sejam imantados por uma atmosfera singular em seus versos. 

Nela, cavalos-marinhos habitam as palmas das mãos do poeta, verbos moram em seu silêncio e por palavras simples seu remo passa. Neste contexto, as rimas articulam-se de forma descompassada. Por vezes, aparecem onde são esperadas e, em outras, escondem-se nas entrelinhas das estrofes. 

Cardoso dedica ainda outros três poemas aos escritores Silviano Santiago (“Um sopro de ar”), Caio Fernando Abreu (“Assim como a neve”) e Vinicius de Moraes (“Poeminha”). Como se fossem minicartas versificadas, as estrofes são dóceis e cativam o leitor por apresentarem uma intimidade poética entre o autor e seus homenageados.    

Título: Melancolia
Autor: Carlos Cardoso
Editora: Record
112 pp.
R$ 32,90


Paula Dume é formada em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, tradutora e editora de livros desde 2011.