“Boris”, conto de Rafael Mendes

O pai cavava bonito, o enxadão subia, descia, fincava seu dente afiado no solo, puxava um pouco de terra, despejava no monte que ia crescendo. Quando o buraco pareceu fundo o suficiente ele parou, repousou o braço no cabo, limpou a testa suada, marcada pela queda que lhe rendera cinco pontos quando criança. O pai não nasceu nem cresceu aqui. Eu apenas cresci aqui. Boris nasceu e cresceu aqui. Ele estava morto, o pai deveria enterrá-lo. Quando eu ia tomar banho na represa que construímos, ele me acompanhava. Os meninos gostavam do Boris porque ele farejava tudo, abria nossos caminhos, matava cobras com bocadas certeiras, nos assistia a pular na água. Quando íamos tomar banho no poço da dona Sebastiana, sempre o banhava junto, depois deitávamos na clareira aberta, e ficávamos assim, refrescados, por muito tempo. Boris não gostava de vacas, ou talvez quisesse brincar com elas. Foi assim que começou sua morte. A morte não acontece do nada, ela vai sendo construída aos poucos, por uma série de decisões cujas consequências não percebemos. Algumas vacas apareceram na rua, fugidas de alguma chácara, ficaram pastando no matagal em frente à nossa casa. Boris latia, latia, corria de um lado para o outro no quintal. O pai ficou irritado, gritava, mandava ele se calar. O pai não gostava de barulho, dormia muito cedo e nós tínhamos que ficar calados, falando baixo. Às vezes, ele se levantava, vinha até a sala, nos olhava enfurecido, abaixava o volume da tevê, fumava outro cigarro, voltava para a cama. Pai é sonâmbulo, sonhava com a tia Lúcia, levantava perguntando por ela, brigando, questionando por que havíamos mandado ela embora, e a gente tinha que explicar que ela precisou voltar para sua casa. Outras vezes acordava gritando, se debatendo, lutando com força contra seus pesadelos. Vó dizia que o pai sempre teve esses ataques no sono. Ele não gostava de falar sobre isso, dizia não se recordar de nada. Não acreditava nele, acho que tentava esconder algo que ele não sabia como nomear. Não havia muro de alvenaria naquela época, nosso quintal era selado com arame farpado. Havia uma roseira alta e perfumada à direita, à esquerda o pequeno portão de pallet cerrado por um trinco de arame. Ouvimos seu lamento, as vacas mugindo, a poeira formando uma nuvem na rua, Boris ficou caído, golpeado por coices. Saímos, pai e eu. Boris me olhou, lambeu minhas mãos, repousou a cabeça no chão, a respiração atravessando o corpo, que tremia, suas patas traseiras espasmavam frouxas. Pai pegou ele no colo, trouxe até nossa casa, colocamos ele na varanda. Mãe veio com leite tentando animá-lo, Boris adorava leite. Nós não tínhamos carro, nem dinheiro para levá-lo ao veterinário. Sentado ao seu lado, o silêncio das lágrimas, minha mão correndo seu pelo, ele arfando, o espaço da respiração se alongando, foi se movendo cada vez menos, até que seus olhos ficaram parados me encarando, então ele os fechou para nunca mais. Foi assim que conheci a morte. Permaneci ao seu lado, meus olhos correndo entre seu corpo imóvel, como se dormisse, e nossa horta de legumes e vegetais, o tomateiro robusto de frutos, as ramas das cenouras e beterrabas rasgando o solo, as alfaces desbotando verdes, o pepineiro atado à cerca, tanta vida e Boris morto. Então o pai veio, embalou o cão numa rede, pegou o enxadão e foi buscar um lugar para a sepultura. Não enterrávamos nada em casa, era mau agouro. A vila era um bairro esquecido, repleto de árvores carregadas com frutos, mamoeiros, bananeiras, jaqueiras, comíamos largo, depois deitávamos nos bosques onde brincávamos, onde tínhamos incipientes e desajeitados encontros sexuais. Era nos bosques e terrenos baldios que enterrávamos nossos animais. Importante cavar fundo, evitar que o cheiro fosse até as casas, evitar que os urubus sobrevoassem em bando a copa das árvores, que a cova fosse devassada, o animal, meio carcaça meio morte, largado em meio de caminho. Pai terminou de cavar e voltou para nos chamar. Mãe não quis ir, já chorava muito. Boris gostava muito dela, eles saíam juntos para buscar adubo para a horta, ele disparava, como se guiasse, apontasse, o exato local onde deviam recolher o adubo, voltava alegre, sabia que quando a mãe preparava composta ele seria banhado, mãe apontava a mangueira para o alto, criando um arco de água, ele pulava, mordia, pulava, lambia, pulava, bebia. Carreguei o Boris no colo até sua cova, ficava próxima a uma jaqueira ampla, nos balançávamos num dos galhos, um balanço arriscado, a árvore na parte mais alta de um barranco, a queda seria de alguns metros, três ou quatro, um braço quebrado. Dispus seu corpo na cova, busquei uma flor, coloquei sobre seu corpo. O pai não dizia nada, cravejava o chão com seu belos olhos verdes, a boca curta, cabelo e barba bem aparados, pai era mais silêncio que palavra. Com as mãos empurrei a terra sobre o corpo de Boris, coloquei algumas pedras para marcar o local, os meninos iriam gostar de saber onde ele foi enterrado.


Rafael Mendes é tradutor e poeta. Residiu em Franco da Rocha, Dublin e atualmente mora em Barcelona. Publicou Ensaio sobre o belo e o caos (Urutau, 2018). Participou da antologia Writing Home: The New Irish Poets (Dedalus Press, 2019). Seus poemas e traduções já foram publicados em diversas revistas do Brasil, Irlanda e EUA. Edita o blog:
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