“condução”, conto de nayara noronha

Reconhecia os ônibus pelas cores da carroceria. Não perguntava para a mãe qual a cor do nosso destino, apostava comigo mesma qual seria a coloração daquele dia. Sentia até um frio na barriga durante a espera no ponto. Os faróis se aproximando cheios de expectativas. Será que era o nosso? O pai já tinha me ensinado que os amarelos eram os circulares, os azuis transitavam entre os bairros e os vermelhos iam até as cidades vizinhas. Forçava as vistas para enxergar os letreiros luminosos. Nem sempre dava tempo de formar as palavras, eu ainda estava aprendendo a juntar as sílabas. SAN-TO… e antes de descobrir a santidade, o ônibus azul passava. Outros bairros, até mesmo os com poucas letras, era difícil de pronunciar. S-I-O-N, repetia baixinho para decorar. Os vermelhos eram raros no nosso bairro. A direção que eu sempre acertava era a amarela: CENTRO.

Esticava meu braço o mais longe possível para dar o sinal. Morria de medo do motorista não me ver.

— Cuidado, minha filha! — a mãe me puxava para longe do meio-fio.

O ônibus ia perdendo a velocidade. A porta da frente mal se abria e subia os dois degraus quase num pulo só. Aguardava ansiosa minha vez de chegar até a roleta. O trocador contava as pratas suficientes para única passagem. Então, colocava em ação minhas habilidades de passar por debaixo da catraca sem encostar na chapa de alumínio. Segurava as duas tranças dos meus cabelos com uma mão, com a outra, me apoiava na roleta. Nunca sujava a roupa e minha mãe sorria de orgulho.

Dentro do ônibus, desviava meu olhar das costas alheias à procura de um assento desocupado. Não que eu não me importasse de chacoalhar em pé. Às vezes até me aventurava em soltar as mãos do balaústre. Se estivesse entupido de gente, meu corpo quase não se movimentava. Um pouquinho mais vazio, dançava ao som das esquinas. Alegria mesmo era sentar perto da janela. Observar os prédios, as ruas, os viadutos. Tanta gente lá fora.

No meu aniversário de doze anos, ganhei de presente um bilhete único, a autorização para ir à escola desacompanhada e um sermão sobre os cuidados de transitar sozinha pela cidade. Devia escolher pontos de ônibus em ruas movimentadas; evitar se sentar ao fundo; não falar com estranhos, principalmente homens mais velhos; nunca aceitar nada que me oferecessem na rua; carregar a mochila virada para frente; separar o valor da passagem no bolso — para caso o bilhete falhar; sempre oferecer meu assento para as pessoas mais velhas e mulheres com crianças. Eu concordava, balançando a cabeça, com a lista interminável de imposições: era o preço da liberdade.

Uma independência cerceada, é verdade. A mãe ia comigo até o ponto de ônibus, o pai me esperava na volta. Eu reclamava do excesso de controle com os horários, me queixava da falta de confiança. A mãe dizia que o problema não era eu, eram os outros. Uma vez, houve um acidente no trajeto da escola para casa, uma batida entre um caminhão e um automóvel. A cal da carga espalhada pela pista impedia o fluxo nos dois sentidos. As buzinas empenhadas em trazer de volta o movimento do trânsito. O toque da sirene da ambulância misturado com o da polícia, forçava a passagem entre a fila de veículos parados. Eu nunca tinha presenciado um acidente antes e a possibilidade de alguém ter morrido me deixava agoniada. Tinha lido numa revista abandonada numa sala de espera do dentista que mesmo enterrados, as unhas e os cabelos continuavam a crescer. Fiquei impressionada com a força da morte, mas naquele dia, não vi defunto algum. Quando o ônibus ultrapassou o local, apenas a poeira esbranquiçada foi deixada como indícios da ocorrência.

Cheguei em casa muito mais tarde do que o horário de costume, encontrei meus pais apavorados. Não sabiam se brigavam comigo ou me abraçavam.

— A gente estava tão preocupado.

— Por que você não nos avisou?

— Como? — foi minha resposta. Ganhei um celular e um pouco mais de autonomia.

No ensino médio, fiz questão de arrumar um namorado de um colégio diferente, de um bairro distante. Nos conhecemos no torneio interescolar, ele jogava handebol e eu, vôlei. Enquanto as meninas torciam pelos jogadores de futebol, os meninos prestavam atenção nos shorts das jogadoras. Comemoramos as derrotas com catuaba quente na praça perto do ginásio. Não foi difícil chamar sua atenção, ninguém ligava para os times de basquete e handebol. Continuamos a nos ver depois disso. Às vezes, ele vinha me esperar na porta da escola, outras, eu ia de ônibus até ele. Também era comum nos encontrarmos no meio do caminho. Perambulávamos pelas ruas em busca de algum canto para nos agarrar.

Foi com ele que dei meus primeiros amassos. Éramos inexperientes, os dois. Mapeávamos nossos corpos, a vergonha dando lugar à curiosidade. Começávamos as trocas de carinho com beijos demorados, cheiro no cangote. Ele afagava meus cabelos, delicadamente, encostava o nariz na minha nuca e inalava a água de colônia misturada com suor. Aos poucos, com a ponta da língua, desbravava minha orelha, afundando os dedos em meus cachos. Eu adorava essa parte, antes do ritmo da respiração mudar, da inocência dar lugar à urgência, das bocas se desencontrarem, as mãos descerem pelos seios, entre as pernas, do sangue quente sustentando o pau duro. Cada célula do meu corpo ansiava por continuar. Não nos aguentávamos mais de tesão, o que faltava era um lugar na cidade. Até que um amigo de um amigo nos emprestaria o quarto, os pais iriam viajar. Combinamos de transar em numa quarta-feira à tarde.

Um dia antes da data combinada, na volta para a casa, o 9210 estava demorando mais do que de costume. O ponto cheio, as pessoas reclamando do atraso. Decidi pegar o 4802: não me deixava perto do prédio, mas tinha um ponto na pracinha, terminaria o trajeto a pé. Sentei ao fundo, no banco do corredor. Coloquei os fones de ouvido, cantarolava em silêncio, meu estômago borbulhando de ansiedade pelo dia seguinte. Não prestei atenção no alvoroço do ônibus, só me dei conta do que estava acontecendo quando mãos surradas me arrancaram os fones e alguém exigiu o celular, o dinheiro e a mochila. O bilhete único ficou escondido no bolso do jeans. Eram dois assaltantes. Um dava as ordens e o outro fazia o recolhe.

— Rápido! Rápido! Rápido! Celular, dinheiro, bolsa! Passa tudo!

Todos obedeciam. O desejo era acabar logo, dissipar a tensão, chegar em casa e esquecer. No entanto, alguém tentou reagir lá na frente. O assaltante dos fundos me puxou pelos cabelos. Encostou o cano gelado da arma no meu pescoço, atrás da orelha. Puxou meu corpo contra o seu. Senti sua excitação. Com seu hálito podre, vociferava ameaças. Uma criança começou a chorar. Uma senhora puxou o terço. Outros suplicavam por calma. O assaltante da frente mandou o motorista parar o ônibus. O zunido do pistão de ar das portas anunciou o fim. Fui jogada no chão, com o rosto sobre o alumínio frio, os cabelos desgrenhados cobrindo o desespero. Enquanto recebia ajuda para me levantar, os assaltantes fugiram.

O ônibus encostou adiante, numa avenida movimentada. Aguardamos para fazer o boletim de ocorrência. A polícia compareceu sem alarde, com as luzes e sons das sirenes desligadas. Como era menor de idade e fui feita, brevemente, de refém, ligaram para meus pais me buscarem na delegacia. Não gostei da experiência de andar na viatura. Um policial sentou ao meu lado, o outro guiava o volante, o banco do passageiro ficou vazio. Grades de ferro separavam o porta-malas dos bancos de trás. O vidro fumê escurecia a cidade lá fora. Conversaram sobre mim como se eu não estivesse presente.

— A bandidagem não é boba, pegaram a passageira mais gata de refém.

— Acredita que ela ainda tá na escola?

— Nem parece — e, com as pontas dos dedos, ajeitou os fios da minha franja atrás da orelha, acariciou meus brincos.

O pai já me aguardava na entrada, a mãe ficou em casa para se acalmar. Nem desci da viatura, me abraçou, aflito. Desviei de seus braços, vomitei no meio-fio. Na tentativa de ajudar, o pai levou as mãos para segurar meus cabelos. Contraí o corpo e me afastei.

Em casa, segui direto para o banheiro. Ao me despir, soquei todas as roupas na lata de lixo. Queria apagar os vestígios daquele dia. Só salvei o cartão do ônibus. Nua, entrei no chuveiro como quem pede por socorro. A água quente não me acalmou. Esfreguei todos os membros com força, a bucha vegetal me arranhando. Era como se o toque do sabonete me causasse alergia, a textura do xampu irritasse o couro cabeludo. Com o pente, o desembaraçar dos nós parecia insuportável. Enrolada na toalha, usei o dorso da mão para desembaçar o espelho. Não me reconheci na neblina do reflexo.

Na terceira gaveta do gabinete da pia, encontrei um aparador de barba. O zunido da máquina me aquietou. Pressionei os pentes-guias na nuca e puxei para cima. As cócegas eram um bálsamo. As madeixas se soltando, pairando no ar, caindo lentamente pelo chão. Passei uma, duas, três vezes, mas logo, o aparelho parou de funcionar, entupido pelos tufos de cabelos. Do lado de fora, a mãe batendo na porta.

— Filha, o que está acontecendo?

Revirei as gavetas atrás de uma tesoura. Só achei uma pequenininha, sem ponta, mal dava para picotar a franja. Pensei na efetividade da cera quente para ficar careca, não parecia haver quantidade suficiente. As pancadas do lado de fora ficaram mais fortes.

— Abre essa porta, filha! Não nos faça arrombar.

Puxei com força o restante das mechas. Era preciso continuar. A quantidade de fios arrancados era desproporcional ao esforço. Com uma pinça, queria arrancar fio por fio. Não distinguia as vozes gritadas atrás da porta. Usei as unhas para coçar o repuxo e, com furor, esfolei a pele. Era preciso não sentir nada. Num estrondo, a porta se abriu, o choro rompeu e o alívio veio em formato de gotículas de sangue.


Nayara Noronha nasceu em São Paulo em 1988 e mora em Belo Horizonte. É professora e pesquisadora na UFMG. Publicou o romance Filha (7 Letras, 2022) e tem contos publicados em coletâneas.