Faz de conta
acordava mais cedo que todos
o ar parado e frio da casa
um silêncio abafado, zumbidos de geladeira
a imensidão toda estalando
como uma velha
caminhava medindo a pressão dos pés
a necessidade de pisar manso nas escadas
conter os ecos do corredor
manejar a maçaneta
com cuidado
cruzava a porta do quarto de brincar:
uma vida
toda uma vida ali
nele, meus irmãos não existiam
e eu era uma das meninas da tevê
tinha cabelo liso e um quarto só meu
cor-de-rosa filha única do cabelo bom
estirava um lenço na cabeça, posicionava
as pontas nos ombros
como madeixas
deitava no colchão à parede, no chão
as panelinhas
dormia
e me fazia outra
Rio, Sarajevo
sabem bem do esquecimento
carregam nas ruínas a fuligem do dia
sabem do esquecimento no corpo
e se sustentam, lembretes
estruturas e corpos fincados
apenas no presente
dando pistas de um passado
distorcido
errático
carregam sobre o chão à luz
as sobras da memória:
me olhei atenta no espelho hoje
ainda não sei dizer
se o claro da pele
foi violência ou amor
Mariana Correia Santos (1996) é poeta, tradutora e graduanda em Letras na USP. Trabalha como produtora editorial e, em 2018, foi selecionada para a oficina de poesia do Clipe da Casa das Rosas.