Dois poemas de Ronaldo Cagiano

Bronze

Na gramática do tempo
consuma-se a linguagem perfeita
das estátuas.

Everado Norões

Na praça com seu nome
passo em frente
ao busto inerte de Getúlio Vargas
e saúdo as aves veteranas
que há décadas depositam em sua cabeça
o engenho das fezes
batizando o metal sem vida.

Olho ao redor
e a vida invertebrada
de vai e vens indiferentes
não se atém
à inutilidade de todas as homenagens

Mergulho na tarde
que, melancólica e sem pressa,
invade e rumina a cidade
em sua imutável e desértica
condição
com seu tempo siderúrgico
endurecendo os pulmões

Atônito entre os labirintos
de provincianos disfarces,
retido na indecisão
de desconhecidos atalhos,
perco o fio dessa meada urbana,
carrego o pesadelo dos dias
e me enfurno na paisagem

Estação adversa

Pois não. O passado é um país estrangeiro,
mas é esse para sempre o nosso país.

Luís Filipe Castro Mendes

A viagem ao passado
nunca regressa:
na combustão da memória
sinto um cão
chafurdando o íntimo,
adulando um cardume de açoites.

Animal lambendo a ferida,
escória num continente esquivo
onde adubam-se canteiros de melancolia.

As cidades nomeiam
seus mortos
e as efígies de bronze
como tobogãs de insetos,
com seu repertório de excrementos
deixa-os mais vivos
do que nós:

resistem em meio à ausência de bússola
e à fecundação do precário
nesses tempos de ilusões no cio
e colheita de fósseis do nada.

Martelo feroz da existência
é essa música do tempo
tutelando meus dissabores
notas culminantes feito lâminas:

é o fado
ou o fardo da vizinha com besouro na garganta
sibilando salmos em desvario,
acidente
na rota de minhas insônias
quando viajo em galáxias de sangue.

Há um mundo dentro das palavras
(máquina soturna)
que tento desbravar:

esse promontório
que é sedução
                           ou abismo.


Ronaldo Cagiano é mineiro de Cataguases, viveu em Brasília e São Paulo e vive atualmente em Portugal. Formado em Direito, é autor, dentre outros, do livro de poemas Observatório do caos (Patuá, 2016) e do livro de contos Eles não moram mais aqui (Patuá, 2015), vencedor do 3º lugar do Prêmio Jabuti 2016.