“Gosto de Amora”, conto de Mário Medeiros

Eram rosas e azuis e faziam uma enorme planície de cores em contraste com o verde do chão. Na minha cabeça era um campo grande gigante, tão grande quanto meu pai, cujos passos eu mal conseguia acompanhar. Eu me lembro de caminhar e às vezes saltar para poder apressar meu passo, como ele a todo instante falava que eu deveria fazer. Mas eu gostava, ele não falava mal, era bonito de ouvir, bom. Meu pai era um homem cheio de conselhos e ditados. “Apressa o passo, que cobra que não anda não engole sapo”. Eu não entendia bem aquilo e ficava imaginando uma cobra parada em sua toca, sem mover os pés – sim, eu pensava que cobras tinham pés, já que ele dizia que elas precisavam andar para engolir sapos – vendo a vida passar e os sapos, sapinhos e pererecas olhando em desafio, dizendo “dona cobra, não vai me engolir? Venha cá fora, dona cobra”, com a  voz como naquela história que ele contava toda noite para mim, antes de dormir, da Festa no Céu, e como o sapo astucioso fez para chegar no baile do céu. O sapo, para mim, era o bicho mais inteligente do mundo, mais inconformado também e mais sofrido. Especialmente o cururu, todo rajado preto, das suas cicatrizes. Desafiava a cobra, bolava um plano para subir aos céus, se esborrachava todo no chão, caído de um lombo de pássaro ou de uma nuvem (a história mudava toda noite, mas eu gostava dos dois caminhos)e voltava no dia seguinte para fazer tudo de novo. Cobra que não anda não engole sapo, então eu tinha que ser rápido para chegar ao nosso destino, a todos os destinos do mundo, em passos largos apressados, como aprendi com meu pai.

Eram rosas e azuis e eu nunca entendia muito bem porque meu pai parava na Floricultura Formosa – era sempre a mesma – para cumprimentar o homem velho gordo preto de longa barba branca e risada alta. Ele dizia sempre a mesma coisa: “É o menino! Ei, menino, leve uma flor para sua vó, outra para seu tio e esta aqui para seu irmãozinho. E tome seu pirulito”. Eu tinha um irmão que nunca saía daquele campo rosa e azul, junto da minha avó e meu tio. A gente visitava eles, junto de um monte de gente que eu nunca lembrava direito o nome mas que meu pai dizia ser tudo Parente, parente nosso. E eu nunca entendia porque todo mundo morava no mesmo campo verde, mas eu ia, com meu Pai Gigante, Gigante forte e preto, com cheiro bom de banho tomado de manhã, junto comigo, que ele fazia questão que a gente tomasse todo dia e penteasse o que ele chamava de “a nossa raiz”, toda para trás, e passasse desodorante lavasse o rosto, escovasse o dente e arrumasse a cama… eu achava meio chato tudo aquilo, todo dia, mas cobra que não andava não engolia sapo, meu Gigante Preto fazia questão de dizer. E se seu rateasse, ele se fingia de bravo ou ficava muito mau mesmo e me controlava só com o olhar para dizer aquele ditado que eu mais temia: passarinho que come pedra, sabe o intestino que tem. Meu, eu não conseguia deixar de pensar no suplício que seria comer pedra, com ou sem opção e como ela sairia depois. E me dava um medo, igual quando minha avó Dita dizia que se a gente comesse laranja ou melancia com semente, as sementes iriam brotar de dentro da gente. Eu não queria comer pedra, nem semente de laranja ou melancia, nem imaginar como isso tudo iria sair de dentro de mim, então eu fazia, fazia tudo, temendo o pior que a voz do Gigante Preto era capaz de dizer.

E eu não queria deixar aquelas flores que o velho gordo preto de barba branca da Floricultura Formosa me deu caírem no chão. Eu queria entregar pro meu irmão, que meu pai dizia ter ido embora um pouco antes de eu nascer e que agora morava ali com a gente nossa e era feliz. Eu não sei como meu irmão fazia, porque já achava muito difícil morar na nossa casa, nossos pais e o outro irmão nosso, já era bem complicado. E ele morava com aquele mundo de gente. Será que tinha regras, se tinha que tomar banho, comer, acordar na hora certa? Será que ele tinha que ir para escola todo dia e ficar fazendo conta e um monte de coisa chata? Eu sempre perguntava pro meu irmão, mas ele só sorria, sempre o mesmo sorriso, piscando maroto, numa foto dele garoto, e se eu ouvia a sua voz era apenas dentro de mim, atrapalhada pelo meu pai que estava sempre colocando a mão no rosto quando a gente chegava na casa azul do meu irmão. E a mão do Gigante voltava toda molhada lá de cima do seu céu, me abraçando forte contra seu peito. Eu não entendia nada.

Eu sempre deixava meu Pai Gigante um pouco sozinho, porque ele havia me ensinado que às vezes o silêncio falava muito alto e a gente precisava andar um pouco para poder ouvir a voz do vento. Então, eu andava pela casa azul do meu irmão, pela casa rosa e desbotada da minha avó e via que elas eram todas parecidas com outras casas azuis e rosas de tanta gente ali naquele campo verde e bonito, onde o vento fazia curvas e mais curvas, falando alto em silêncio, até que eu chegasse ao meu lugar preferido dali da casa de todo mundo.

Era uma parede enorme, com uma galeria de retratos de gente muito antiga ou de moradores novos que estavam por ali. Eles me ajudavam nas aulas de matemática, porque eu ficava fazendo conta, com os números que meu pai me ensinou, que significavam quando aquelas pessoas tinham chegado ao mundo e quando tinham chegado à “Casa da Formosa”, como ele gostava de dizer. Eu sempre perguntava a ele se algum dia a gente iria morar ali também e ele me dizia que sim. Então, eu ficava fazendo conta para saber quanto tempo as pessoas demoravam para mudar de casa e ficava meio espantado quando parecia que tinha gente não levava nem um ano enquanto outros ficavam uns oitenta ou mais ali, indecisos, entre uma morada e outra.

Mas o que eu gostava mesmo do paredão não era ele em si, nem as fotos, nem tanto os números, quanto o sabor daquelas frutinhas pretas bem doces, que a árvore que saía de trás dele, dava. Era grande, enorme, porque tudo era gigante pra mim. E toda vez que eu ia visitar meu irmão, minha avó e aquele mundo todo de gente que morava ali, eu não podia sair de lá sem visitar a árvore gigante que dava aquela fruta preta como a gente, doce como minha vó Dita e cheia de bolinha feita a cara do meu irmão mais velho em nossa casa. Que meu pai dizia que o nome era feminino de amor. E eu não me importava que ela sujasse a minha mão, mas minha mãe ficava uma arara quando a gente chegava e eu tinha mancha preta, roxa, bordô pela camisa e pelo calção. Meu pai me ajudava a lavar e limpar e sempre trazia com ele também um saco cheio de amoras.

E quando minha mãe sempre perguntava como e por que eu conseguia trazer aquilo tudo, eu dizia que tinha pedido licença, igual ela tinha me ensinado, para toda aquela gente que morava ali, e que tinha pedido direitinho para poder subir em algum daqueles telhados rosas ou azuis de lá e começar pegar as amoras e colocar no saco, que eu trazia guardado no bolso escondido do calção. E que sempre eu não via chegar o Gigante Preto Pai atrás de mim, que me colocava nos ombros para eu poder chegar nos galhos mais altos e que me falava que, se eu tivesse pedido licença e com educação, estava tudo bem, que eles iam deixar eu pegar e ficava ainda mais doce, porque amora era feminino de amor. E que um dia todos nós iríamos morar ali e dar frutas doces uns para os outros e para quem visitasse nossa casa. Eu perguntava, então, sempre para o meu pai quando a gente poderia se mudar, porque tudo ali parecia ser mais legal que a escola e o chato do meu irmão e a molecada da rua de cima. E o vento ria alto de mim, enquanto a tarde caía sobre nós.


Mário Augusto Medeiros da Silva tem 37 anos. Sociólogo de formação e professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autor de livros e artigos na área de sociologia. Em 2017 foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura com o livro de contos Homem em Janeiro.