Lygia Fagundes Telles: ferina, felina, fingidora

Gato, no futebol, é o jogador que altera a idade para parecer mais jovem e poder jogar em categorias de base inferiores com idade mais avançada do que a permitida. Dois dias após a morte de Lygia Fagundes Telles, descobriu-se que a escritora tinha 103 anos ao morrer, e não 98, como era anunciado publicamente.

“Eu caio e quebro o fêmur. Já os jogadores de futebol aprendem a cair como bailarinas”, disse Lygia em 2009, durante cerimônia de comemoração dos 100 anos da Academia Paulista de Letras, realizada no Centro de Treinamento do São Paulo Futebol Clube. Por trás do duvidoso apelido “dama da literatura”, uma mulher que escondia a idade e quebrava ossos, para ficar apenas na biografia.

Lygia – uma das raras autoras cujo primeiro nome carrega sozinho uma aura que permite sua identificação imediata – foi, por assim dizer, um “gato” da literatura. E restará entre a coincidência e o segredo a predileção da autora pelos felinos, na vida e na ficção. “O gato, que nunca leu Kant, é possivelmente um animal metafísico”, escreveu Machado de Assis, em síntese fabulosa da afeição pelo incompreensível.

Retrato de Lygia Fagundes Telles – Domínio público / Acervo Arquivo Nacional / Wikimedia Commons

Incompreensível, na obra de Lygia, não tem a ver com a dimensão do entendimento mecânico do texto. Dificilmente se verá leitores dizendo não terem entendido um conto ou um romance da autora. A jogada é outra: a compreensão do lygiano foge a esquemas lógicos rígidos e deita raízes mais profundas no terreno do ardil, da hesitação, do equívoco. Em seus contos, particularmente, nem tudo é o que parece – “foi um gato que miou comprido ou foi um grito?”, se pergunta a personagem no final de “As formigas”. Terão saboreado melhor o mistério Lygia os leitores que, nos labirintos de sua ficção, experimentarem a suspensão de suas certezas.

Escritora profícua e multifária, brincou nas brechas, driblou nas fendas, pincelou o verde do insólito e passeou à meia-luz entre animalidades e terrores. Manipuladora de selvagerias e pores do sol, foi expoente do gótico não apenas no Brasil – dimensão subvalorizada em sua prosa – mas na América Latina, trabalhando temas, formas e lentes, ainda nos anos 70, hoje em alta numa nova tradição que reúne autoras como Mariana Enriquez, Samanta Schweblin, Mónica Ojeda, Giovanna Rivero, María Fernanda Ampuero, entre outras.

A fim de investigar esses e mais bocados de enigmas, sem a afobação das notas e artigos obituários instantâneos, a Lavoura convidou para um bate-papo Tamy Ghannam (USP) e Nilton Resende (Uneal), dois leitores e pesquisadores apaixonados por Lygia Fagundes Telles. Bate-papo, de fato, porque há perguntas diretas, fatalmente, mas também digressões e provocações. Boa leitura.


Como Lygia entrou na vida de vocês?

Nilton Resende: No início, tudo foi meio enevoado. Eu via o nome dela na chamada da novela Ciranda de Pedra em 1981, novela que eu amava e que me fazia sofrer muito. Parece que anos depois vi a própria Lygia uma vez, num programa de televisão, linda, elegante, com um colar de índigo no pescoço (essa imagem ficou guardada e depois retornou, anos mais tarde, como se realmente fosse ela, mas não tenho certeza). Depois, vi seu nome na Revista do Livro, do Círculo do Livro, ao lado do livro As meninas, que fiquei paquerando por mais de ano. Em 1986, vi de novo seu nome, agora em panfletos grudados ora na parede da livraria que eu frequentava (a Caetés, ou talvez ainda tivesse o nome de Livro 7)… ora na parede da livraria, ora em alguma parede no trajeto entre a Escola Técnica e o centro, divulgando a Bienal Nestlé de Literatura.

Mas o encontro mesmo se deu quando recebi meu exemplar de As meninas pelo Círculo do Livro, sentei-me na cama para lê-lo e li: “Sentei na cama. Era cedo para tomar banho. Tombei para trás, abracei o travesseiro e pensei em M.N. […]”. Ali, começou finalmente a magia. Devorei o livro, passei dias guardado com ele dentro do quarto, andando na rua, sentado ou em pé nos ônibus… Ao terminar, minhas irmãs trouxeram da escola um livro da série Para Gostar de Ler, com os contos “Natal na barca” e “Dezembro no bairro”, de tanto que eu falava de As meninas. No mês seguinte, a Revista do Livro veio com uma crônica do Ignácio de Loyola Brandão sobre a Lygia. A partir daí, apaixonei-me por ela também. Um jovem prestes a completar 17 anos e completamente apaixonado por uma autora mais velha que sua avó. Um dia, minha avó me perguntou se eu era apaixonado por ela como um homem se apaixona por uma mulher, e eu disse que não, mas nem eu mesmo sabia explicar, porque no final das contas tudo aquilo era um encanto. Eu estava encantado por ela, como estava encantado por suas palavras, mesmo sem entender: as palavras e aquela mulher.

Lygia Fagundes Telles e Nilton Resende em 2019 – Acervo pessoal de Nilton Resende

Tamy Ghannam: Foi antes pela literatura de Lygia Fagundes Telles do que pela escritora em si que me interessei. Eu era adolescente e costumava frequentar a biblioteca pública do meu bairro caçando livros cujos títulos me cativassem, carente de maiores referências literárias pelas quais me guiar. Um dia, passeando desnorteada pelas estantes, como gostava muito de fazer, encontrei As meninas e pensei que, sendo eu uma menina, certamente me identificaria com a narrativa dessa tal autora que até então desconhecia. Assim foi que caí pela primeira vez numa armadilha lygiana, pois o que se apresentava naquele romance era muito além do que minha pouca experiência de vida (e literária, há de ser dito) poderia captar. Logo abandonei a leitura do livro, demasiado complexo para mim, em termos de estrutura, estilo e temáticas, e não pensei mais nisso.

Anos depois, quando já cursava Letras, esbarrei outra vez com Lygia Fagundes Telles nas estantes de uma biblioteca pública, e foi como se eu ouvisse um chamado, um convite misterioso para o desafio de tentar acessá-la novamente. O livro era a coletânea de contos Antes do baile verde, que me fisgou completamente, e do incômodo da fisgada logo se fez o encantamento: como podia essa autora entrar assim tão fundo na gente, no que há de tão escondido que nem mesmo nós reconhecemos que está lá, e, de uma hora para a outra, tirar tudo do lugar, deixando-nos, por fim, sozinhas a lidar com a bagunça provocada pelo que ela escreveu? Senti que Lygia Fagundes Telles me conhecia melhor que ninguém, e então me apaixonei por ela.

Você, leitor,​ leitora, caia em um conto dela para sentir só a quentura do inferno. Sempre digo: terreno movediço. Comer pelas beiradas. Lygia nos atrai para a ciranda. Uma ciranda, mas de pedra. O coração, todo ele, ardente. O seminário, só de ratos. As nuvens, elas, em constante conspiração. Dama um diabo!” Assim falou Marcelino Freire, na Folha de S.Paulo, a respeito da alcunha “dama da literatura”. O que acham dela? E mais: esse “comer pelas beiradas”, essa “quentura do inferno”, enfim, são dimensões do texto lygiano que nem sempre aparecem na primeira leitura – depois do alçapão, outro alçapão. Numa conversa entre Mariana Enriquez e Guadalupe Nettel sobre esse abrir de alçapões, a última diz que a elas não interessa o “bullshit”. E a Lygia? Ela também estava interessada nas coisas elas mesmas, sem maquiagens?

TG: A imagem de “dama” até cabe numa impressão inicial de Lygia Fagundes Telles e de sua obra. Quem a visse em qualquer momento da vida prontamente enxergaria a elegância que lhe era própria, o porte bem-apessoado e polido que condiz ao que se entende por dama. Essa elegância foi transmitida aos seus escritos; ninguém pode negar que, em termos de estilo, a prosa lygiana é de um refinamento nobre, que se distingue pelo requinte com que se apresenta.

O problema é que “grande dama” não dá conta de tudo o que faz Lygia Fagundes Telles, da sua literatura que, ao contrário do comportamento plácido esperado de uma mulher domada, remexe na lama profunda que encobre a verdade oculta de seus personagens e a verdade oculta de cada um de nós. Ela bagunça tudo, mandando às favas o bom-comportamento associado a quem carrega o título de dama. Nesse sentido acho que o trabalho dela conversa com a frase de Nettel; à Lygia interessava, sim, “as coisas elas mesmas”, e não o bullshit, mas não de modo tão ostensivo. Há algo de tigrela em seu narrarte, como se a prosa nos seduzisse e conduzisse silenciosamente até… que é tarde demais. 

Por mais bem-intencionada que seja, “grande dama” não deixa de ser uma nomeação meio redutiva a quem foi Lygia Fagundes Telles e a força inesgotável de sua produção literária — além de potencialmente afastar novos leitores, já que essa coisa de dama produz um efeito de intocável à obra, de endeusamento em muito distante de nós e da verdadeira humanidade que a obra lygiana perscruta. Sou a favor de pensarmos um novo epíteto, que comporte a mulher inteira e crepuscular que foi Lygia Fagundes Telles.

NR: Eu não gosto dessa coisa de “dama”, assim como também não gostava de quando se dizia “a nossa maior escritora viva”. Para que isso? Ela, quando viva, era um dos maiores nomes de nossa literatura, e breu. Por que tratar dela colocando-a entre as escritoras, como se não estivesse par a par com os homens? Ninguém fala que o escritor X é “o maior escritor vivo entre os homens”. E outra coisa: pra que ficar dizendo que Y ou W é maior do que alguém, se tudo é subjetivo?

Há uns escritores (homens) que algumas pessoas julgam ser o maior da literatura brasileira atual, mas que me provocam coisa nenhuma. E eu digo: fulano é foda, mas não me bate, saca.

Outra coisa: acho que, na verdade, quando a gente diz que Z é a pessoa escritora mais foda (e Z é a pessoa escritora de que mais gostamos), a gente está mais é se autoelogiando, dizendo nas entrelinhas: eu sou uma pessoa leitora incrivona fodona, pois só gosto de quem é fodivelmente foda.

Isso da “dama” surgiu quando Hélio  Pólvora publicou na Isto É (acho que foi na Isto É) um texto sobre o Seminário dos Ratos, em 1977, e chamou assim, com esse adjetivo. A coisa pegou e ficou, e foi repetida, sem contexto… Então, pois bem, podemos chamar de dama, sim, mas por isto aqui: ela nunca grita, ela sempre sussurra; ela nunca suja suas páginas com sangue, mas a morte está sempre ali. Há os alçapões, e a gente cai neles, mas sem sequer perceber. A gente só sabe quando o ar já está faltando, e aí já é tarde, já se passaram horas… O sangue, quando aparece, é uma gota, uma pequena gota que pingou numa luva.

O professor João Cezar de Castro Rocha, ao comentar o conto “Seminário dos ratos”, retoma os atributos de uma obra-prima para Walter Benjamin e frisa que o texto de Lygia seria dotado de “pervivência”, que diz respeito não só à perenidade do conto, mas também à possibilidade de ser lido em diferentes chaves se no período em que foi escrito (1977) ou se em pleno 2022. Vocês lembram de outros textos-chave da obra de Lygia cujas possibilidades potenciais de leitura se abrem de acordo com o momento histórico pelo qual se atravessa? Mais ainda: se recordam de textos que se ressignificaram de acordo com a trajetória pessoal de vocês?

NR: Acho que toda a obra dela tem essa característica, seja por conta do período histórico em que é lido (autoiluminando-se obra e contexto), seja por conta do momento individual em que o lemos (autoiluminando-se obra e pessoa). 

Por estes dias, revisitando alguns de seus textos, tomei mais e mais consciência de quanto preconceito carrego comigo, pois os “preconceitos estruturais”, tão presentes em nossa sociedade, estão o tempo todo em sua obra. 

Há uma década, lendo-a, eu olharia para mim e veria determinados aspectos. Hoje, o que mais vejo é como sou preconceituoso, muito preconceituoso. Relendo textos que li na juventude, percebi e percebo em mim diversas atitudes preconceituosas presentes em suas personagens.

Então, talvez por conta de as questões, na obra lygiana, não se explicitarem, elas ficam sempre à espera, ficam num estado de latência, podendo ser percebidas de um modo ou de outro, a depender do momento histórico coletivo ou do momento de amadurecimento pessoal de quem a lê.

TG: Concordo com o Nilton quando ele diz que a “pervivência” está presente em toda a obra. Além de muito ligada às inovações produzidas a partir de transformações a nível coletivo, do qual a literatura lygiana não se aliena, sua manifestação depende em grande parte do ânimo particular dos próprios leitores. Isso porque Telles trabalha amiúde com incertezas, com o tal do crepúsculo que encantava a autora e suas personagens, e considera quem lê uma parte fundamental do que é lido; portanto, em alguma medida, na literatura lygiana cabem tantas chaves de leitura quanto legentes, nós mesmos sujeitos a variadas perspectivas, afinal de contas, a vida é esse acender e apagar de luzes que ora destacam determinado ponto, ora focalizam alguma outra questão, um jogo de iluminação e sombra que Lygia incorpora à sua literatura.

Por ser uma obra viva, animada, sua produção abre espaço para que o inesgotável se instale como campo de criação. Se considerarmos as publicações como parte de um só projeto literário, também a ordem com que os textos são lidos oferece a cada um deles diferentes chaves interpretativas. Assim, não só os escritos com referências políticas mais explícitas, cujos contextos sociais interferem diretamente no enredo e na trajetória das protagonistas, como o conto “Seminário dos ratos” e o romance As meninas, por exemplo, estão suscetíveis a esse processo de ressignificação provocado pelos rumos históricos da nossa civilização, mas também aqueles mais intimistas abrem-se a novos significados conforme avançamos enquanto sociedade e, especialmente, enquanto indivíduos.

Ler criticamente autores profícuos exige muitas vezes selecionar lentes e privilegiar gêneros e influências. No caso de Lygia, particularmente em sua contística, uma lente inevitável é a do gótico. Trabalhando nas brechas, nas frinchas, no subterrâneo, o gótico se espraiou na literatura e influenciou escritores que trabalharam com o indizível e suas não-formas. Hoje o gênero parece estar em alta, especialmente numa nova geração de escritoras latino-americanas, nomes como Mariana Enriquez, Samanta Schweblin, Monica Ojeda, Giovana Rivero, Maria Fernanda Ampuero. Antes delas, Lygia Fagundes Telles talvez tenha sido precursora no trato contemporâneo dos temas góticos na América Latina.

A famosa frase “não peça coerência ao mistério nem peça lógica ao absurdo” é dita por um vampiro, no conto “Potyra”, que inclui elementos como grotesco, horror, maldição ancestral, retorno dos mortos, sonho premonitório, vingança, enfim, elementos tipicamente góticos. Mas neste conto – e em outros como “Venha ver o pôr do sol”, “As formigas”, “Tigrela”, “O jardim selvagem” e “O anão de jardim” – não há mais, como nos primórdios do gótico, um conflito metafísico entre o bem e o mal. Se antes os vampiros eram vilões e narrados por outros personagens, em “Potyra” há uma mudança de foco: o vampiro conta sua própria história e expressa sua condição. Como vocês enxergam o gótico nos contos de Lygia e em que medida essa lente pode expressar uma certa condição lygiana de literatura?

TG: É difícil pensar seriamente a literatura de Lygia Fagundes Telles sem considerar esse aspecto. A loucura, o medo, o terror psicológico e a morte, temas tradicionalmente góticos, são também temas lygianos, bem como os elementos elencados na pergunta. Para além da afinidade temática e dos símbolos comuns, Lygia instala seus textos num espaço de sombra, ali onde mora a impossibilidade de acessar por completo o outro e o eu, onde está aquilo que a razão não dá conta de descrever. Em suas criações há sempre um lado obscuro que não se revela senão por frestas, à meia-luz, jamais por inteiro. Aí cabe a lente do gótico, porque nela se angula o sobrenatural que faz parte do real, da nossa condição de mortais, da incompreensão do todo que somos e que à Lygia interessa provocar.

NR: Concordíssimo com a Tamy. À literatura gótica, costumam-se associar algumas características, que não precisam estar conjugadas todas elas numa mesma obra: a presença do sobrenatural; a tensão entre realidade e sonho, realidade e imaginação; a ambientação decadente e/ou em simbiose com as personagens; o exagero sentimental; o medo; a morte; as opressoras relações de poder; as personagens de moral dúbia; a presença do mal; o feio, o grotesco; o terror, o que precede o assombro; o horror, o contato com o assombro; os  segredos de família. Essas características estão presentes na obra da Lygia. 

Lembremo-nos: uma palavra chave em relação a seus textos é “mistério”. E isso justamente porque nós e nosso entorno somos uma grande, uma imensa e profunda pergunta, uma grande, imensa e profunda dúvida, ou perguntas, dúvidas. O cotidiano é assombroso. 

Na literatura em geral, há as obras que são escritas na tentativa de responder a perguntas; a obra de Lygia é escrita para nos mergulhar nelas, sem lhes dar respostas. Por isso não há alívio ao fim da leitura, não há uma imediata catarse, não há epifanias; por isso, após mergulharmos durante a leitura, nós não saímos sujos e no entanto radiantes ao final, como se tivéssemos descoberto algo. No fim, o que temos, é uma enorme interrogação estampada no rosto e na alma, pois sua obra, longe de nos dar respostas, dá-nos perguntas. Talvez depois, um tempo após a leitura, venha alguma sombra de resposta. Mas o que acho é que, na verdade, não surge resposta, mas sim um maior conhecimento da pergunta, do mistério. 

Como um grande medo nosso é o medo do desconhecido, a obra de Lygia é principalmente uma obra de terror ou de horror, porque reafirma o desconhecido. 

Eu ia dizer que isso se dá principalmente nos contos, mas há um fato, aqui: com o tempo, os seus romances foram incorporando isso, tanto que há um perceptível aumento do mistério, da zona de sombra na trajetória romanesca de Lygia, deixando o leitor cada vez menos pronto para dizer “isto é”, tendo de dizer cada vez mais “isto parece” ou “isto talvez seja”. A trajetória Ciranda de PedraVerão no AquárioAs MeninasAs Horas Nuas é uma paulatina afirmação da “falência da razão ordenadora”, para usar a linda e muito bem-vinda expressão de Nelly Novaes Coelho que dá título a um estudo sobre o último romance de nossa Lygia.

Ainda nos subterrâneos dos contos, um exercício de analogia. No desenho Scooby-Doo, os personagens visitam lugares inóspitos, casas mal-assombradas, parques abandonados – paisagens ameaçadas por monstros, fantasmas, zumbis. Os detetives dividem-se em dois grupos e seguem pistas, perdem-se em labirintos, porões escuros e passagens secretas. Depois de uma perseguição agitada, os vilões são sempre capturados. Mas, para surpresa dos detetives e de quem está assistindo, eles estão sempre mascarados – algumas vezes com mais de uma máscara – e as identidades são reveladas ao tirarem suas máscaras. Por trás, há sempre algum rosto já conhecido na história.

Talvez haja algo de lygiano neste fingimento. Em seus contos, temos a consciência de que há um mistério, patente ou latente, e vamos procurando nas brechas do texto as pistas para percorrer o labirinto lygiano sem nos perdermos – ou o contrário – e caminhar até um desmascaramento final. O problema – a beleza – é que, ao contrário de Scooby-Doo, em que o vilão é fatalmente revelado, em Lygia não há vilões puros, e a própria revelação final é incerta, mascarada, fazendo com que o conto, em sua estrutura, assuma o formato de uma máscara. Outra possibilidade é que nunca tenhamos tirado máscara nenhuma, eram peças falsas, e aí podemos imaginar uma Lygia sorridente dizendo “tolinhos”. O que é a máscara nos contos de Lygia? Como lidar com esses mistérios?

TG: De fato, há sempre algo a desmascarar na literatura de Lygia, especialmente em sua contística. O disfarce costuma ser não só o ponto de partida, como também a sustentação de grande parte das narrativas lygianas, de onde desponta o fio a ser desnovelado na trama e mesmo na artesania dos contos. Dedicar-nos à tentativa de retirar essas máscaras, como no desenho Scooby-Doo, é um desejo praticamente irresistível sobretudo porque a autora vai inserindo nos textos uma porção de elementos que nos convidam a decifrá-los, como contos independentes ou como parte do projeto total, coisa que sempre me pego fazendo e refazendo nas leituras.

Ela nos dá muitos símbolos e chaves para inferirmos o que se dissimula, como fazem os personagens da animação, mas a diferença está, justamente, no fato de que à literatura lygiana importa menos revelar a face oculta por baixo da máscara e mais a máscara em si, voltar-se não à exposição total do que se esconde sob ela, mas às possibilidades que a presença da máscara oferece. Se em Scooby-Doo eles procuram resolver os mistérios, na literatura de LFT a compreensão da existência fundamental do mistério, e não sua resolução, é o próprio fim.

NR: Que delícia tudo isto. Estou o tempo todo escrevendo e sorrindo. E sim, somos “tolinhos”. 

A Tamy falou dos elementos que a Lygia coloca em seus textos, os “sinais”, como os pedacinhos de pão que João e Maria colocam no caminho, à medida que se embrenham na floresta. Em Lygia, esses elementos são uma piscadela para nós, um sinal do pacto firmado entre ela e seus leitores contumazes.

No entanto, isso não nos isenta de ao fim da caminhada continuarmos perdidos. Como Tamy disse, “na literatura de LFT a compreensão da existência fundamental do mistério, e não sua resolução, é o próprio fim”. Assim, se considerarmos um texto lygiano como um corpo, sabermos do pacto apenas nos dá a oportunidade de enxergarmos um pouco o esqueleto desse corpo, porque a alma mesmo, o que está ali “nas profundas”, talvez jamais alcancemos. E eu acho isso muito bom.

Eu sempre hipervalorizei a razão. Agora, amadurecendo ou envelhecendo, cada vez mais valorizo os nossos outros modos de lidar com o mundo. Cada vez mais eu gosto de não entender algo, de ficar voando ao fim de uma leitura.

Assim, eu sorrio bastante quando releio um texto da Lygia e não entendo. Eu recebo aquilo, mas quem o recepciona não é a razão, e sim algum outro constituinte meu, e então há uma festa num outro ambiente aqui dentro, porque  a razão já foi festeira demais, já reinou demais. 

Acho que a obra de Lygia permite-nos que sejam afagadas zonas nossas que este mundo, tão racionalista, teima em adormecer. Eu tenho amado experimentar o desconhecido, o não saber, a impossibilidade.

Por isso, acho que lidar com a obra de Lygia é, de algum modo, amadurecer, não por conhecermos algo, mas por aprendermos a lidar com o fato de que muito da existência será sempre, para nós, um mistério. Lygia é necessária.

Poe, Carroll, Tchekhov, Borges, Cortázar, Elliot, Hugo, Lovecraft, Faulkner, Guimarães, Drummond, Gullar, King, Murakami – apenas alguns entre os autores cuja vida e obra estão cercadas de gatos. E Lygia Fagundes Telles, é claro. Como vocês interpretam, para além da lente biográfica, a presença dos felinos na obra da autora? Em As horas nuas, o gato Rahul – cujo nome é uma onomatopeia do choro de um gato filhote – é um dos narradores do romance, inaugurando um regime de existência não-humano e, portanto, não-hegemônico. A especulação da potência animal, criando novos corpos, vozes e metamorfoses pode ser vista como um dos ingredientes da cosmologia lygiana?

TG: Certamente! Pensando nos felinos, especialmente, há neles qualquer coisa de traiçoeiro e, talvez por isso, encantador que em muito combina com a personalidade da literatura de Lygia Fagundes Telles, obra que, como já comentamos, é esbelta e cheia de armadilhas, mas não deixa de retribuir com um satisfeito ronronar à afeição daqueles que insistem em acarinhá-la.

A referência ao gato Rahul é realmente excelente como prova disso, e há muitos outros textos da autora em que a relação entre animal e humano dinamiza as questões que estão no centro de sua cosmologia. Geralmente, a potência animal desperta nas personagens humanas certo estranhamento que acompanha a expansão das fronteiras do real e a suspensão dos limites entre o eu e o outro, como no caso dos contos “Tigrela”, “Verde lagarto amarelo” e “As formigas” – pequeno rol do qual participam dezenas de exemplares lygianos. O animal em LFT acaba abrindo espaço para que o humano nele se reconheça.

NR: Há também o gato em “A medalha”, que termina sendo uma das grandes interrogações nesse texto, porque terminamos de ler e ficamos nos perguntando o que ele estaria fazendo ali, que simbologia ele tem; se Adriana, ao falar com ele, fala apenas com o animal, fala consigo mesma, fala com o primo por quem foi apaixonada na adolescência… A inserção do animal, e do gato em específico, eu acho que nos joga justamente para a zona que a razão não alcança.

Lembremo-nos também do cavalo que aparece em As Horas Nuas. Caramba, essa presença, os trechos relacionados a ele são das coisas mais bonitas que já li.

Muito se pergunta: por qual livro começar a ler Lygia? Em homenagem à escritora, vamos fugir do óbvio: em primeiro lugar, não por qual livro; conto. E por fim: por qual conto começar a reler Lygia? Qual conto ou quais contos melhor significam a obra de Lygia e oferecem, na releitura, os elementos misteriosos que podem funcionar como uma chave secreta para o lygiano, e que não se aferem numa primeira leitura?

TG: O conto que indico para um contato inicial com Lygia Fagundes Telles talvez seja o mais conhecido da escritora: “Venha ver o pôr do sol”, do livro já citado Antes do baile verde. Nele, se não temos a dimensão absoluta da produção lygiana, temos ao menos a noção de quão fácil e deliciosamente ela pode nos prender numa artimanha, do quanto sua obra não é inofensiva, uma ficção pela qual possamos passar intactos. Gosto de que essa consciência, a de que nós, leitores, é que nos entregamos a seus escritos e não o contrário, esteja presente na leitura de LFT desde o começo da aventura. Depois dessa primeira experiência, a vontade de lê-la mais é praticamente imediata.

Quanto à segunda questão, Nilton defende a tese de que o conto que melhor oferece a totalidade da literatura lygiana é exatamente o que fecha sua contística, “O anão de jardim”, e eu concordo com ele, que o chama de “conto total” (e fala muito bem sobre essa relação no seguinte artigo).

NR: Eu queria colocar aqui minha assinatura, apenas para subscrever o que a Tamy falou, pois acho também que “Venha ver o pôr do sol” é a melhor porta de entrada para a contística lygiana. Mas para não me chamarem de preguiçoso, digo que concordo com a escolha desse conto  porque ele tem características muito importantes: tem uma linguagem acessível para leitores de todas as idades; tem uma fábula fascinante; tem diversas histórias sob a história imediatamente apreensível; é um texto ficcional em que temos uma reflexão não explícita sobre o fazer literário; é um texto ficcional em que temos uma reflexão não explícita sobre a leitura do texto literário; é um texto ficcional em que temos uma reflexão não explícita sobre o poder da linguagem; é um texto inesgotável.


Tamy Ghannam é formada em Letras (Português e Francês) pela USP-FFLCH e pesquisadora de narrativas brasileiras contemporâneas. Desde 2015 é responsável pelo LiteraTamy, plataforma multimídia de crítica literária independente que produz resenhas, mediações e entrevistas com autores, editores e outros profissionais da literatura. É curadora do Clube de Literatura Brasileira Contemporânea e administradora do perfil Biblioteca Lygiana, que reúne conteúdos referentes à literatura de Lygia Fagundes Telles. Foi jurada dos prêmios Oceanos e Mix Literário, em 2020, e do prêmio Jabuti em 2021.

Nilton Resende nasceu em Maceió-AL. É Professor Adjunto de Literatura da Universidade Estadual de Alagoas/Campus Zumbi dos Palmares, em que coordena os Grupos de Pesquisa Ensino de Literatura e Estudos da Narrativa. Integra a Cia. Ganymedes de teatro. Publicou os livros O Orvalho e os dias (poesia), Diabolô (contos), A construção de Lygia Fagundes Telles: edição crítica de Antes do Baile Verde, Fantasma (romance). É editor do selo literário Trajes Lunares. No cinema, tem trabalhado como roteirista, ator, preparador e diretor de elenco. Roteirizou e dirigiu o curta metragem A barca (2020), baseado no conto “Natal na barca”, de Lygia Fagundes Telles.