“mãe”, poema de helena costa carvalho

Mãe

Regou o altar, os pés, a mesa posta. Germinou. Riu alto.
Louvou a floração e o cautério. E tudo deu ao filho
gerado: a vida e a morte.

 

Revinda a noite, a Mãe tece meninos
em invisíveis fios no seu colo de embalo.
Ata-lhes em nastro os pulsos dóceis
inunda-lhes as bocas dúcteis
intactas de leite,

Espera devagar pelas flores que
trarão a manhã.

*

Foram três estações inteiras no teu ventre
e um hemisfério novo
de arpejo consagrado à chuva:
nem nações, nem reis
nem a medula exangue de todos os viventes.
Um filho só: redondo, órfão
como todos os filhos, todas as nações
falhos demais para partir o ovo.

*

Morre um país sedento todos os dias
(meio punhado de hulha no ataúde), e tanta
a água nos teus dedos de febre.
As mãos desmedidamente estendidas
são lagos pacientes primeiro, depois
o rizoma de toda a terra.
É a época das chuvas no deserto.

*

No teu seio de loba, um país à mingua
e a boca insaciável: redonda
de primeira cria. Por ela todos os países
e filhos podiam bem morrer, minguar
ao imo da sua abstracção infinita.
E ainda assim o leite derrama-se para além
da boca primogénita e açorada
em constelações nocturnas.
Todas com nomes de filho.

*

Um filho-só chamado pássaro que orbite a baía indígena dos vivos : basílica em jejum
                                                                                                       [nominal poupada ao dilúvio.

*

Entraste inteira no mais dorido alvor lunar.
Útero todo sal nesse remoto chão sem chuva
decalcado à morte, dois braços estéreis
de sândalo e sementes.
Aqui não chove nos teus dedos nus
de areia sem folhagem
nenhum filho é fiado no teu regaço.
(É o tempo das serpentes no deserto.)

*

A noite demora a noite. A Mãe desafia de cio as estrelas em latidos de fome.

*

Agora que vazaste as fontes todas
em convulsões minerais, choro libando
a geração, fia-nos Mãe
a tua boca de possíveis, esse casulo
que abriste no futuro, como se
de novo te rebentassem as águas
e inundasses o mundo.


Helena Costa Carvalho é investigadora no CLEPUL (Universidade de Lisboa) e bolseira de doutoramento da FCT, preparando uma tese sobre a obra do poeta português António Ramos Rosa. Integrou a Mostra Jovens Criadores 2009 (CPAI/IPJ) na categoria de literatura. Em 2012, recebeu o Prémio Revelação de Poesia da APE — Associação Portuguesa de Escritores. Tem colaborado em diversas publicações de Portugal e do Brasil.