Cassiana me pede discrição; que eu esqueça de uma vez por todas essa história. Isso me tortura profundamente. Já faz tanto tempo, e ainda sigo com um nó preso na garganta; no corpo todo. É como se estivesse com uma doença terminal ou degenerativa, que paralisa os músculos, a ponto de neutralizar o coração cansado. Vimos o que não devíamos, num momento injusto e cruel, que se desenhou em frente às nossas retinas. Nas férias da escola, meu pai nos deixava tempos sem fim na fazenda do meu avô Otaviano, ou Nanim, como era conhecido. Ele era bruto e caprichoso; matava calango no dente, de pirraça, e mostrava o feito a quem quisesse ver – como aviso e provocação. Andava com uma peixeira lustrosa no cós da calça puída, e vivia espicaçando ervas daninhas, bichos esquisitos que ousavam aparecer em sua plantação. Numa tarde de sexta, em março de 1998, ele nos obrigou a ajudá-lo com os animais de criação. Alimentamos os porcos e os carneiros, cada qual distribuindo ração, forragem e água, em quantidade suficiente para servir a um batalhão. Os animais eram mais bem tratados que nós, humanos. Havia um certo desprezo pela raça humana. Meu avô não costumava conversar, sequer dava “bom-dia” ou “boa-noite”. Depois que vó Anísia morreu, o homem piorou ou pirou de vez; vivia só em seu mundo – porque fazia questão. Afastamo-nos do cenário para buscar alimento na casa grande. Na volta, de longe sentimos um clima estranho, como se o céu houvesse se fechado bem em cima de nós. Nanim estava de costas e usava muita força ao subir e descer o corpo, com pancadas grosseiras para o chão. De início, dada a força do episódio, receamos chegar naquele instante e, com isso, sermos sacrificados por sua ignorância, como se fossemos atrapalhar o que tivesse de ser feito. Cassiana entrara num estado de catatonia, absorta, anormal; dava indícios de ver algo que eu não via. Apurei os sentidos e constatei: o velho Nanim segurava uma carcaça miúda por um dos braços. Era, sim, um resto de humanidade, ou molambo, atado pela crueza de um homem irascível. Vi sangue espalhado pelo braço e pela calça do velho. Ele olhou ao redor, talvez para ter certeza de que não era conferido, andou uns metros e, por detrás de uma árvore, despejou o corpo morto, indefeso – vivo também o era. Pelo que pude ver, era um menino de uns dez anos; na nossa faixa. Cassiana não tinha reação; não quis acompanhar os rastros do avô. Eu, abismado, ainda tive nervos para segui-lo. O velho continuou a trabalhar como se nada houvesse acontecido. Pegou a sua enxada e tapou o buraco, compactando o solo, para que restasse concretado o serviço e o causo. As horas que se passaram foram terríveis, porque teríamos de almoçar com o velho e a empregada. Não trocamos uma palavra, quase como de costume. Mas Cassiana chorava, incontrolável. O velho se irritou e ligou para o filho, para que fosse nos pegar. Cassiana não comeu. Eu não toquei na carne de porco assada; comi feijão e arroz, com nojo daquela água temperada com sangue e suor. Nunca mais voltamos ao lugar, logo porque, no ano seguinte, o velho foi morto com um tiro na cara e outro no peito, quedando desfigurado. Atribuem o caso a um homicídio por motivo torpe – não levaram nenhum objeto de valor da fazenda. Pelo que se sabe, havia muitas famílias necessitadas na região, e o velho era acostumado a maltratá-las. Com certeza, foi um acerto de contas. Não creio que tenha feito só aquilo com um menino esfomeado, que teria, segundo os meus cálculos, ido à sua plantação para furtar uns bocados para a subsistência da família. Meu pai desistiu de acompanhar o caso, que, de fato, não dará em nada. Ninguém quer saber de um velho amaldiçoado. Morreu; acabou-se tudo.
Adriano Espíndola Santos é de Fortaleza. É autor de Flor no caos (Desconcertos, 2018), Contículos de dores refratárias (Penalux, 2020), o ano em que tudo começou (Penalux, 2020) e Em mim, a clausura e o motim (Penalux, 2021). Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista. Mestre em Direito. Especialista em escrita literária e em revisão de textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes.