“museu do seringal”, conto de susy freitas

Talheres. Copos. Panelas. A lamparina e os apetrechos para o trabalho. Tudo na conta do barracão, onde seu homem entrou soldado e saiu escravo. Seu homem e depois seus pequenos, os que sobreviviam, se embrenhando no meio da mata, no meio da madrugada, uma por dentro da outra feito gema no ovo, mas ao contrário, machucando ao invés de proteger.

Eles aprenderam que é assim a mata daqui, para depois te contarem. Para depois você me contar, e assim sucessivamente. A comunhão do sangue que atravessou o mapa, que concentrou as agruras na ponta da língua para que alguém se lembre. Porque nossa história não tem valor, você dizia já velhinha, para frente e para trás na cadeira de balanço, não tem valor pra eles, mas pra mim sim. Não tem dinheiro que indenize os meus meninos, teus tios. Mas aqui é assim, você concluía sem realmente concluir nada. É assim.

Recém-chegada ali, você se deparava com imagens vagas, cada vez mais longínquas. Lembranças que a selva engolia rápido pra dentro do verde, porque a selva também é veloz para enterrar o que não é da selva. E no meio desse nada, vinha o palavreado do pôster do Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia, que o seu homem ruminava para dar sentido aos dias de fome e imundície na jornada até aqui:

Alista-te no
S.E.M.T.A.
QUE TE DARÁ:
A passagem
De caminhão, você saiu de Limoeiro até Teresina (PI).
Um equipamento de viagem
De Teresina, para São Luís (MA) de trem.
Alimentação
Em São Luís, um mês de espera até o navio abarrotado de arigós zarpar.
Um bom contrato
De São Luís, até Belém (PA), e o rio cada vez mais longe do mar.
Amparo à tua família
Enfim, Manaus
Assistência médica e religiosa

E dali pro seringal, onde tudo faria sentido. Onde um hectare de terra a aguardava, ao contrário de casa, onde nada havia para aguardar nem aguardar você. E seu homem, ele já não seria apenas um arigó. Porque extrair borracha para a vitória é colaborar no esforço de guerra, dizia o outro cartaz empoeirado lá em Limoeiro ainda. E quando a guerra acabasse, a pensão, a mesma de um ex-combatente. O seu homem, o herói.

E depois a realidade. Você conta que eles, os homens, partiam como ilhas, homens e meninos muito longes entre si, e nem sinal de um vizinho, porque a selva era grande demais, e as seringueiras gostavam da distância entre elas. E quando seu homem ou o seu menino as encontravam, rasgavam-nas de um lado e de outro, e esperavam, porque as seringueiras eram lentas ao deitar a seiva para o látex. Elas não pensavam na guerra, nas promessas do inferno verde ou no tratado de Washington, e nem nas onças ou porcos selvagens que poderiam aniquilar os homens, nem nas doenças que os mosquitos e a fome e as febres lançavam sobre sua família. Não, elas não pensavam em você. Elas apenas salivavam uma seiva cujo preço se tornava uma próxima e parca refeição, uns tantos goles de cachaça, uma zonzeira besta de fazer o próximo filho para a selva levar.

E foi coisa de meses você entender que você também não pensava. Que as seringueiras ensinavam seus ciclos e logo o que se extraía num dia já não era a mesma coisa um tempo depois, e que para se manter, você também botaria a lamparina na cabeça madrugada adentro e a faca de sangria nas mãos, caindo fundo na mata e temendo as mesmas ameaças que os homens e os meninos. Porque já não era o suficiente você cuidar do casebre, nem defumar a borracha, e nem plantar o de comer.

Deus deu, mas pouco e sem vontade, você me diria muito tempo depois, no transe que a cadeira de balanço impunha ao gosto dos seus pés. E me fez ver na minha cabeça imagens das contações me perguntando se vieram dos livros da escola ou da minha própria carne, num tipo próprio de sangria das nossas raízes. Suas palavras me cortando, de um lado e de outro, tirando de mim as suas lembranças, bem devagar. Porque as seringueiras eram lentas, e por isso você me ensinou paciência.

A chegada e a partida das crianças. Você se lembra bem de cada uma delas. Você lembra que costumava pensar em gritar. Gritar nas longas horas do dia de um casebre sem o seu homem, cuja volta da mata era sempre uma dúvida, cujos passos os bichos e os índios conheciam antes mesmo de arrumar o lampião na cabeça. O bebê na rede, tão mirrado que até o choro se contraia, uma vontade de viver, mas não muita, e o cachorro atravessado na porta, dormindo um sono duro.  Memórias que você não imaginava que cabiam nos velhos, porque de alguma forma a delicadeza viria com as rugas. Mas não foi nada assim. Você lembra que costumava pensar em gritar. Mas você nunca gritou.

Ao invés disso, contou. Botou no lápis e no papel essa raiva. Você contou cada centavo que entrava, que saia, cortou a cachaça de casa, tudo pro mato, até que o barracão não teve mais como enganar o seu homem e ficar com tudo que produziam e mais um pouco. E seus meninos nunca mais precisaram morrer no seringal, e veio os tempos da cidade, e veio o papai e os tios, os tios de verdade, vivos, e não histórias, e suas histórias como enfermeira, e a casa no São Francisco, e o gosto do vô pelo tabaco mascado, e as festas de Natal, e seu perfume muito suave sob as roupas humildes, mas muito elegantes para cear em família, e suas mãos bem firmes para segurar o meu braço e me impedir de correr direto para o meio da rua, e seus meninos crescidos casando com as tias me dando muitos primos, e tempos calmos de cadeira de balanço, e suas histórias gotejando em mim, uma história sem heróis, mas cheia de uma força que me nutre o sangue, uma certeza de que o seringal me botou coisas nas veias que me fazem queimar.


Susy Freitas nasceu em Manaus. Tem três livros de poesia publicados: Véu sem voz (Bartlebee); Alerta, Selvagem (Patuá), vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus; e Carrego meus furos comigo (Urutau); além de textos em prosa e poesia em zines e revistas literárias do Brasil, México e Grécia. É uma das editoras da Revista Torquato, publicação amazonense com foco em literatura e artes visuais.