“Na profundeza do lago”, conto de Itamar Vieira Junior

Ele parou o carro quando percebeu que o que se movimentava pela estrada não era um saco preto, como imaginou há cinquenta metros. Foi maravilhada que a mulher que o acompanhava viu que era uma preguiça tentando atravessar à outra margem da rodovia. Pensou como havia sido bom terem parado. Quase não havia trânsito por ali e, tranquilo, o animal se deslocava lentamente, sem noção do perigo, com suas garras abrindo o caminho no asfalto. Com força e delicadeza, o homem a levantou pelos membros para colocá-la num tronco de pau d’arco que vicejava do outro lado.

A mulher pensou, de novo, como havia sido bom terem parado, porque ela não suportaria saber que tinham atropelado um animal tão frágil. Por um instante, seus pensamentos se encheram de afeto, era como se o mundo todo existisse só porque eles estavam atravessando aquela fração de terra, não importando por qual motivo. Foi assim que ela começou a aceitar os argumentos de que aquela temporada na fazenda lhe faria bem. Sim, faria, como ele tornou a repetir, virando seu rosto para mirar seus olhos, sem se preocupar com o que poderia estar à sua frente. Logo ela iria se esquecer dos conflitos que se acumularam depois que instauraram o conselho de ética e moral na escola onde lecionava. Esqueceria a paranoia das acusações que começou a enfrentar, de que suas aulas doutrinavam os alunos. Estava esgotada emocionalmente pelos embates com diretores e pais de estudantes, que se seguiram ao surgimento do tal colegiado.

Ela chegou a pensar que, de fato, eles tivessem razão. Leu e releu seus planejamentos de aula. Esqueça, escutou do marido, essa licença veio em boa hora. Ela poderia ter um ano sabático para se dedicar aos pequenos projetos que durante o resto do tempo não conseguia desenvolver. Quem sabe não conseguiria escrever aquele livro, tão adiado?

Em breve isso será passado, foi o que disse o marido, um comerciante que investiu na propriedade para onde seguiam. Não temos do que reclamar, ele disse.

Ao passarem por um pequeno túnel de árvores ela viu novamente um vulto na estrada. Parece que tem outro animal logo à frente, disse. Desceram do carro e, ao se aproximarem do animal, ele constatou que era uma raposa. Sim, uma raposa, ela lamentou, sem admitir para si mesma que o animal estava dividido ao meio.

Antes de o sol se pôr, eles chegaram à porteira. Quando o caseiro e sua mulher a abriram para que o veículo pudesse entrar, ela pôde ver, à luz fraca, o quanto aquele lugar havia se modificado: do abandono quando o visitou pela primeira vez, no momento da compra, ao jardim agora colorido e bem cuidado. A casa com o alpendre largo se erguia solene à beira de um lago com um espelho d’água brilhando àquela altura do dia. Um lago do qual ela não se recordava.

*

Na manhã seguinte, ela pôde admirar cada canto da paisagem ao redor da casa. O pomar, o pequeno e bem cuidado jardim e o lago. Dois cisnes flutuavam na sua superfície e, por um instante, ela esqueceu o motivo que a levou até aquela temporada na fazenda. O marido agradeceu de forma efusiva ao caseiro e à mulher, e pediu que tomassem conta de sua esposa, a dona da propriedade, enquanto ele estivesse fora. Mas antes dele partir, quando ficaram a sós, ela interveio, dizendo que não se recordava do lago. Ele respondeu que das outras vezes que estiveram ali era tempo de severa estiagem, o lago existia, sim, mas estava no mínimo de sua capacidade. Agora, com ele cheio, inclusive podiam irrigar a pequena tarefa de cafezal que ficava além do pomar.

De fato, ela pensou, nunca dei importância a este lugar. Nem mesmo se recordava dos detalhes. Era como se pousasse agora numa terra nova, recém-descoberta, quase idílica, como se nenhum homem ainda tivesse ali colocado os pés. Embora as marcas do trabalho do caseiro e dos construtores no jardim e na casa fossem perceptíveis, havia o silêncio duradouro das coisas intocadas, que ela não sabia explicar.

Nos primeiros dias depois da partida do marido, dormiu na rede, sem conseguir avançar na leitura dos livros que havia trazido. Se ofereceu para recolher as folhas secas do jardim enquanto o caseiro o regava. Se instalou na cozinha em alguns momentos para conversar com a empregada, se arriscando até a coar o café num rústico coador de pano. E contemplava, sentada na cadeira de balanço no alpendre, os sons da natureza, tão novos, quase inéditos, para os quais nunca havia voltado a devida atenção. Estava tão imersa naquele cenário que o tempo se arrastava lento, nunca recordava em que dia da semana estava, além de dormir em horários não habituais. Tudo isso, mais do que a deixar desconfortável com a ausência de uma rotina, como de hábito, deu-lhe uma permanente sensação de liberdade.

Certa manhã, em que havia adormecido mais uma vez na rede com um livro sobre seu corpo, despertou com vozes exaltadas. Viu o caseiro na porteira, com gestos bruscos, mandando embora alguns homens – não soube precisar quantos – uma mulher e duas crianças, que pareciam estar juntos. Ao retornar para regar o jardim, ela perguntou quem eram. Ele respondeu que estavam pedindo trabalho, as mesmas pessoas insistindo sempre, senhora, foi o que disse. É gente que não quer nada, quer boa vida sem se esforçar, não devem voltar de novo, completou.

A mulher sentiu um pequeno incômodo com a resposta do caseiro, mas não comentou, por depositar confiança nos seus serviços; afinal, não havia nada, até aquele momento, que a fizesse pensar o contrário. Tentou mais uma vez ler o livro. Mas, sem conseguir, adormeceu.

*

A mulher acordou assustada, com a empregada aflita dizendo que precisava ir com o marido para o hospital. Ele havia passado mal à noite, com falta de ar e dor no peito. Sim, tudo bem, a mulher disse, e telefonou de imediato para a ambulância da cidade para que fizesse o transporte. A senhora não se preocupe, disse a empregada, o ajudante da roça, pessoa de nossa total confiança, chegará até o fim da manhã.

Depois que a ambulância saiu a caminho da cidade, ela telefonou para o marido. Ele perguntou, então, se ela desejava voltar para casa. Não, por enquanto não, tudo foi arranjado, outra pessoa estará aqui enquanto o casal precisar ficar no hospital, o ajudante, você o conhece, respondeu.

Mas enquanto recolhia as folhas mortas com o ancinho, uma mulher e duas crianças se aproximaram da porteira. Ela deixou seus afazeres para perguntar como poderia ajudar. Precisamos de algo para comer, a mulher respondeu. Era uma mulher indígena, tinha o cabelo negro, liso e brilhante.
Suas duas crianças estavam com roupas rotas e faces sujas. Sim, claro, podem entrar enquanto arrumo os alimentos. A mulher reuniu algumas frutas recolhidas do pomar nos últimos dias. São tantas que chegam a apodrecer no chão, disse entregando a sacola à mulher, e além das frutas juntou pacotes de biscoito, farinha de milho e um pedaço de carne. Deus lhe pague, foi o que a índia disse. Aqui não faltavam as coisas, mas o rio, de onde retirávamos o peixe que nos alimentava, secou. As roças que plantávamos nas várzeas também secaram. Que triste! Por quê?, a mulher quis saber. Barraram o rio cá pra cima, a água não chega mais em nossa terra, disse a índia, enquanto encangava um dos filhos no quadril. Como assim, barraram o rio? Barraram pra irrigar as terras dos fazendeiros, já andamos de fazenda em fazenda pra saber onde represaram, mas não nos deixam entrar para ver. Estão nos matando de fome.

A mulher os viu se afastarem, com um nó na garganta.

Enquanto retirava as últimas folhas do jardim, ela observou que os cisnes não mais flutuavam no lago, mas estavam equilibrados apenas por uma de suas patas sobre a superfície. De onde estava, viu os animais numa posição inusitada. Deixou o ancinho no chão e se aproximou para observar melhor. As aves permaneciam imóveis, equilibradas apenas por um de seus membros, como se fosse possível. Intrigada, aproveitou que o ajudante do caseiro ainda não havia chegado e fez algo que há dias ansiava fazer. Retirou a roupa que vestia e deslizou pelas águas sem medo, nadando na direção dos animais. De pronto, sentiu a temperatura envolvê-la de forma delicada. Ao chegar mais próximo, sentiu sua mão tocar em algo rígido. Uma rocha, pensou, eles estão sobre ela. Colocou a outra mão sobre a rocha e viu que a água deslizava como uma pequena correnteza além dela. Não, não é uma rocha, percebeu.

É um muro.

*

Depois que deixei o lago era como se toda a natureza tivesse despontado violenta e repetitiva. Um vale quente e úmido infestado de insetos, uma sinfonia de sons irritantes, seja do canto dos pássaros ou das cigarras, como as vozes dos alunos e dos meus colegas fazendo acusações. Tomei um banho para tentar retirar o lodo que se entranhou entre os dedos dos pés e por baixo das unhas das mãos. Diante do espelho, percebi que eu estava com pápulas nos braços e ao redor do pescoço, como as plantas do jardim.

Os insetos comeram a minha pele enquanto estava deslumbrada com a paz que parecia ter encontrado.

Mesmo depois do ajudante do caseiro chegar, permaneci sentada na cadeira de balanço, que eu agora havia voltado quase que instintivamente para o horizonte do lago.

Os cisnes se agitavam, não flutuavam mais com a elegância com que os havia encontrado. Batiam as asas de maneira selvagem, pareciam disputar o alimento que antes julgavam ser abundante. E ao cair da noite, com minha crescente insônia, foi que percebi que aquele lugar estava para me devorar.

O silêncio e sons que me afagavam à noite, se mostraram cruéis a partir daquele momento.

Sem conseguir dormir, quebrei a promessa de não ligar para meu marido. Queria saber se o muro que havia encontrado era a tal represa que trazia a fome para a gente que morava nas várzeas do vale. Mas ele não me atendeu. E o sono se foi definitivamente, com a dúvida que me roía por dentro.

Ao amanhecer, quis saber do homem que substituía o caseiro se era verdade que a gente que aparecia na porteira estava faminta porque o rio havia secado. Sim, disse. E onde o rio estaria represado?, quis saber. Não sabia dizer. Depois que ele saiu para rachar a lenha, deixei a casa. Segui para o lago, antes que ele retornasse ao dar por falta do machado. Levei-o comigo, flutuando numa cesta de vime para chegar até o muro. Os cisnes me observavam, como se pudessem prever o que eu estava por fazer. De pé sobre a parede, cravei o machado, como se minha força fosse capaz de derrubá-lo. Uma, duas, três vezes. Um tijolo se esfarelou e um pequeno filete de água começou a fluir para o outro lado. Mas antes que pudesse continuar, me desequilibrei e deixei o machado cair, sem possibilidade de recuperá-lo. Meu corpo também afundou. Deixei-o imergir, e na estranha profundeza do lago, enquanto bolhas de ar deixavam minha boca, senti a tranquilidade que um dia perdi.


Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador. É autor da coletânea de contos A oração do carrasco (Mondrongo, 2017) e do romance Torto Arado, vencedor do Prêmio LeYa 2018, publicado recentemente pela Todavia.