Passa as mãos pelo cabelo quebradiço, as duas ao mesmo tempo, pendendo a cabeça para baixo; não há espelho no banheiro da discoteca e os dedos escorrem têmporas acima, contrariando a gravidade. Aproveita o escuro da fila do bar, dissimula a vaidade. Acabou o gin. Cerveja, não. E se nós começássemos a noite?, pergunta ao amigo. Si, espérame que voy a buscar a Ana. Ana tem algo: é interessante, mas não é de beleza fácil, o que a torna ainda mais interessante. Suas pupilas lembram bolinhas de gude. Veste cores que não combinam.
Hola, soy Ana, la pelota humana. Como vas? Te esta gustando aqui? Si, si, mucho, responde. La pelota o que? Es una larga historia, pero es una larga noche. Te lo cuento después, dale? Más hay que leer Raúl Perez Torres para comprendérsela bien. Ele assente com o queixo, imagina o verbo que acabou de ouvir escrito no ar e se diverte em segredo com a falta de hífen. Um terço parece pouco; um inteiro pode ser muito, não está acostumado. Está na metade do mundo. Metade será, pues.
Repousa o Einstein sob a língua com a ponta do indicador, um pedacinho de nada em meio a tanta saliva e conversa em outro idioma, preservá-lo aí pelo tempo que for é uma arte, pensa. E acha graça destes nomes: Einstein, Avatar, Tutancâmon, Ganesha; imagina como se deu o batismo de cada um, e se os nomes influenciam no efeito. Nunca foi de música eletrônica, mas acontece que o DJ mescla tão bem as batidas artificiais com o som do cajón e de flautas andinas. Desabotoa dois botões da camisa de uma vez: em Quito faz verão e inverno no mesmo dia, e dizem que é assim o ano todo.
O calor irradia entre a nuca e a omoplata e se alastra de modo ovalado e diagonal, tomando parte do peito em ondas, anéis de Saturno. Talvez seja a melodia entrando. As luzes em cena são incríveis, as pessoas também, algumas, e observa as que pode, sobretudo quando está na pele do estrangeiro. Não apenas as que estão ali; no metrô, em manifestações, bibliotecas, área de embarque de aeroportos; estar sóbrio não é um obstáculo para mirarlas.Todos olham para o DJ no meio da pista ou para o piso, só uma loira no canto que não; dança, de olhos fechados, rosto com traços de ave voltado para o alto, com uma falta de traquejo e malícia incomum abaixo da linha do Equador. Há alguém na penumbra poucos passos atrás dela, onde os canhões de luzes multicoloridas não alcançam, sua silhueta não é possível definir.
As imagens projetadas no telão, figuras que se dividem ao meio como se se replicassem num igual perfeito mas invertido, um cérebro se repartindo, são nonsenses. Sempre gostou dessa palavra, nonsense, e de outras, melancolia, garoa, brisa, cafuné, abuela, ornitorrinco. Nonsense começa francesa, termina inglesa, nunca tinha reparado, mas se não tem sentido ela não termina. Inglesa. Nem qualquer outra coisa. Ela simplesmente não pode ter fim. Mas desde quando e de quem as coisas todas têm que ter sentido? Ou é preciso apenas senti-las? “Sentírselas”, ahahah. Há alguma coerência no caos? A ver.
A claridade que o poste em frente à casa de shows traz é uma afronta para os que querem ir ao fundo da noite ao fim da apresentação. E não são poucos, e como se parecem nesse ínterim de euforia na projeção entre tudo aquilo que pode acontecer e tudo o que de fato acontece. Encosta em um carro enquanto o amigo sonda qual vai ser. Um rapaz se acomoda ao seu lado, mas mal o nota, fala em francês com alguém e seus olhos claros e desdenhosos, não é possível, têm vida própria, giram um para cada lado. Não é possível, e não consegue disfarçar, encara-o de novo, e passa a mão pelo próprio rosto, descobre-o disforme. Repete o gesto mais algumas vezes, em frequências maiores e com mais força no toque, olhos boca e nariz estão ali, o queixo, porém, parece haver rompido a linha e o abandonado sem contorno, sem referências do que já foi. Inclina o tronco para conferir o reflexo na janela do carro, mas elas não são confiáveis. Janelas de carro não são espelhos; e nem se fossem. Ana surge toda toda com pedaços de manga envolvidos em plástico e uma mochilinha com pirulitos, skittles e água com gás.
¡Hay que mantener los sentidos exaltados!
Ai, Ana, só você mesmo, solamente tu mismo, only you; ah, esquece o que acabei de falar, se perde na tradução. O amigo surge com um conhecido de cujo nome não se lembrará nunca, é muito pequeno para ser um homem regular, é alto demais para ser um anão, a Amazônia corta o Equador, quem sabe não é um pigmeu civilizado e catequizado, não faltam igrejas por essas bandas. A festa vai ser em sua casa. É um artista plástico, conta o amigo a caminho de seu carro, curador. Cura-dor. Ana, claro, vai no banco da frente, brilhando. Ele se senta atrás dela, dividindo o banco com o francês e alguém que entra de última hora sem ser convidado, ainda que de algum modo lhe seja familiar. O coração arranca junto ao motor, mal pode caminhar, não consegue entender como o amigo faz para dirigir, ainda mais nesse país quase sem lei, perderam a linha ou essa linha não existe nem nunca, é o único a colocar o cinto, todos riem de algo, menos ele, o amigo maneja em alta velocidade, cantam músicas de reggaeton, o diabo é quem compôs, coloca uma mão no ombro do banco de Ana e a outra segura o ganchinho-de-pendurar-cabide sobre sua cabeça, sua frio, tranca o cu. De duas, uma: ou vão passar no sinal vermelho e um desses carros monstruosos enxertados conduzidos por um adolescente babaca recém-motorizado vai acertar justamente a sua porta com tudo, ou vão capotar e, mesmo com cinto, vai ser o único a quebrar o pescoço. Dez minutos depois, ou uma hora, que seja, o carro para e todos descem e se embolam a outros que esperam na calçada. A ordem do pigmeu é subir em silêncio degraus e mais degraus; a cidade seesparrama por um vale na Cordilheira dos Andes e sobem montanha acima, passando por varandas, terraços e cachorros privilegiados.
O céu tem uma cozinha pequena e apetrechada e uma sala ampla limitada em dois de seus quatro lados por janelas que vão do chão ao teto alto; uma escada de ferro em espiral conduz ao quarto e à intimidade do anfitrião. Alguns se aventuram, o estrangeiro, não; já há redemoinho suficiente. Senta-se no sofá enquanto a maioria dança, poderia muito bem se deitar. Quando criança, nunca contou para ninguém, brincava de fechar os olhos por alguns segundos e abri-los como se despertasse em outro lugar, teletransportado; agora tem receio de cerrá-los, não paga para ver as figuras que habitam o escuro. O sofá não é estável o bastante, e se desloca para o chão de tacos, pernas cruzadas como o único adulto brincando com crianças em uma festa de gente grande. Só que as crianças cresceram e o joguete é deslizar o nariz na pia do banheiro, em duplas ou trios. Precisa mijar e é a sua vez, carreira solo. Ouve batidas na porta, abre, não tem ninguém; dá um riso sem graça porque a abriu falando que tinha gente, percebe que falou sozinho. Volta a desabotoar o cinto e escuta outra batida, toc toc, torce para que seja da música. Sabe que há som o tempo todo mas não sabe distinguir uma canção da outra, um pout-pourri infinito, e às vezes parece que tudo está em silêncio e as pessoas dançam cada uma ao seu ritmo, como se estivessem com estes fones sem charme que dispensam fios. Deixa o banheiro sem encarar o espelho.
Pega um copo com água, a única bebida de horas, e se encosta em uma das janelas. Precisa de ar, de muito. Seu pai dizia que na hora da briga em lugares fechados o certo é se apoiar na parede para não ser surpreendido por trás. Mas o pai já se foi e o conselho expirou; se debruça no parapeito dando as costas para todos e busca traços dele nas luzes amarelas que sustentam os rincones quiteños durante a noite. Que vista foda. E se fosse ao seu encontro? Está numa altura suficiente para romper mais do que ossos, se o amigo já tiver ido embora ninguém se dará conta, quanto tempo tardaria até identificarem o corpo sem passaporte, tatuagens ou cicatrizes, e para o resto da família ficar sabendo, São Paulo está três horas à frente. Morir é mais poético que morrer.
Las huskies llegaron, despiértate, diz o amigo, resgatando-o. São duas irmãs, baixinhas e com seios grandes, cabelos pretos e olhos cor de âmbar. Gêmeas. Lembram o homônimo siberiano mas, mais ainda, bruxas. Todos os caras as querem por algum motivo, Ana se alvoroça. Por ele, já iria embora, ainda é noite, no entanto, acaba na pista, deslocando tacos. Ana o puxa pelas mãos, gira, gira, e o solta perto de uma das caninas. Sua boca está seca, a língua resvala pegajosa nos lábios impermeáveis, se dá conta de que pronuncia os verbos e objetos antes do sujeito.
Nessa noite um mês que estou faz. Um mês nesta noite faz que estou.
Ela lhe dá as boas-vindas, e confessa que está nela, nesta noite, há um ano. O conselho é desfrutar, a cabeça hesita entre o passado e o futuro, não lhe dê ouvidos, ao corpo é que cabe lidar com o presente, é assim, afinal, e será. O que resta é dançar. Os dois riem.
O pigmeu avisa que a festa acabou, a noite ainda não. Ana e o amigo convencem as huskies a aceitarem uma carona para onde quiserem ir no mundo, elas entram no banco de trás e antes de fecharem a porta entra mais alguém, à força, não cabe, mas o conhece de algum lugar, é bom de rosto, mas não importa, nunca viu aquele rosto esbugalhado, a beira de extrapolar o corpo. Estaria esse tempo todo?
O carro parte ainda mais veloz, as ruas carecem de pessoas, cutuca o amigo, têm que se livrar desse ser que sobra, é um mau agouro, não sei por que mas acredite em mim, o casal do banco da frente está ocupado demais tentando ludibriar as irmãs, logo elas. Encosta a cabeça no banco e, quer saber, foda-se; a gêmea ao seu lado, não sabe se já falou com ela, começa a lhe contar, das coisas que viveu e ainda deseja, em um espanhol suave e puro de ruídos, que derrete o ouvido, o corpo e escorre pelo banco, não se prende ao que é dito mas ao tom da voz, às formas geométricas que nascem na sua boca, uma boca tão perto, basta virar o rosto, se beijá-la vai deixar de escutar, conte-me mais, por favor, é uma loba não uma husky, te interpretaram mal todo esse tempo, o corpo vive o presente, torce para que o amigo pegue a estrada, rasgue o continente cordilheira abaixo, nunca esteve tão longe da morte.
Abra los ojos, sussurra Ana.
As huskies acabaram de descer do carro, y el hombre? Elas já se foram, te dejaron besos, o tipo desembarcou junto a elas e desapareceu, não é possível, Más vale pájaro en la mano que cien volando, gargalha o amigo, Ana também ri, o riso de quem vai trepar insanamente, que filhos da puta, mas Ana já não brilha tanto. O carro volta a entrar em movimento e ele estica o corpo no banco traseiro, a cor do céu amanhece pelo vão da janela entre a porta e o teto, mas poderia ser o entardecer, e acreditaria se assim lhe dissessem, basta se teletransportar; fecha os olhos sem medo, as noites existem para isso, redimir os dias.
Heitor Flumian é jornalista. Foi repórter da Trip Editora, pela qual assinou reportagens nas revistas Trip, Tpm e GOL Linhas Aéreas. Já colaborou com veículos como revista Serafina e The Summer Hunter e, atualmente, também se dedica à literatura e a roteiros de projetos
audiovisuais. Seu conto A triste volta de Tufão Antunes foi publicado no blog do Juca Kfouri.