Em seu último romance, Djaimilia Pereira de Almeida inscreve na pele dos seus personagens o peso do neocolonialismo.
Por Lucas Litrento
O calcanhar de Aquiles e a cartola de Cartola são como o lamento de Bessie Smith ecoando de uma vitrola empoeirada. A imagem de uma encruzilhada às 5 da manhã. Este romance é um lamento, mas não apenas melancólico do jeito que todo romance é (segundo Lukács, existe melancolia no âmago do gênero porque “é impossível extrair do mundo exterior uma voz que indique sem equívocos o caminho e determine os objetivos”). Em Luanda, Lisboa, Paraíso, esse sentimento é estrutural, como os acordes menores e os alicerces de uma casa recém-incendiada.
O livro da portuguesa nascida em Angola, Djaimilia Pereira de Almeida (também autora de Esse Cabelo), foi publicado em 2018 e levou o Oceanos no ano seguinte. Como o título, que já esboça um mapa, os protagonistas Cartola e Aquiles, pai e filho, partem da Angola para Portugal, em busca de uma cura para o calcanhar malformado do mais novo. Mas um jovem chamado Aquiles ter o calcanhar com má-formação não é uma coincidência romanesca nem uma piada sem graça, mas o último fôlego de certa esperança que reside nos lares e nos corpos das margens.
Acometidos por esse sentimento, os Cartola de Sousa sobrevivem. O nascimento do jovem marca o início de um arrastar de pernas. As complicações do parto culminam na deficiência do filho e na doença da mãe, Glória, que nunca mais saiu da cama e vive sob cuidados da filha Justina. O país ferve à beira da independência de Portugal, mas eles tentam fugir dessa realidade: “Ajoelhado na beira da cama, Cartola lavava o cabelo de Glória. Ela dizia-lhe ‘mais uma xícara, Papá, faz favor’ e fechava os olhos como se um fio de água durasse uma vida inteira. Lá fora a cidade rugia, mas estavam surdos”. É nesse cenário pequeno que os quatro vão alimentando parcamente a esperança de que o futuro reserva um descanso e a cura do jovem está em Portugal. Partem, enfim, depois dele completar quinze anos. Mãe e filha ficam em Angola, o dinheiro não é suficiente para todos.
A cidade os recebe com chuva; os prédios, as ruas, os carros, as multidões, tudo pesa. O movimento do corpo de Cartola no meio da chuva e suas roupas molhadas são uma música de Cartola, o outro: igualmente negro, igualmente pobre, igualmente triste. Pai e filho aterrizam “sem saber mesmo o rumo” que irão tomar.
E Portugal é um moinho. Eles prestam atenção aos poucos, mas não há muito a ser feito. Imigrantes com quase nenhuma referência, jogados ao léu, tentam a sorte. Começam os infortúnios, as barrigas vazias… É duro e seco, não há muito a ser dito. O lamento é cantado quase num sussurro, num meio tom – o esboço de um quarto de pensão, a umidade e o mofo. As promessas não vingam e os homens se embrenham nas obras da construção civil. Ter que construir os alicerces dos sonhos dos outros, à sombra do colonialismo.
O diálogo entre os dois é construído nos silêncios. “Mas o que é um pai a não ser um esquecimento? Sabia lá ele dizer (o que o alegrava) se algum dia tinha sido menino.” Esse silêncio também é cola, funda uma relação simbiótica entre pai e filho, onde ambos se confundem pela escassez. O que leva Cartola a revisitar a sua infância, em passagens que só reforçam a poética de Djaimilia e a desconstrução dos estereótipos das masculinidades dos personagens, na medida em que, cada vez mais, o narrador vai humanizando suas durezas e cicatrizes.
Em Seis propostas para o próximo milênio, Italo Calvino dedica a primeira conferência à leveza, mais relacionada à forma que ao conteúdo, e sua relação com a minuciosidade e poeticidade nos textos literários. O autor traça o princípio da literatura como “função existencial, a busca da leveza como reação ao peso de viver”. No romance, o narrador não esconde o peso jogado nos que vivem na periferia do sistema, muito menos o da dinâmica dos corpos da margem transitando nos espaços do centro; está visível, mas imerso nessa tal leveza. Como um chorinho (ou Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo), tanto que Calvino também diz que “a melancolia é a tristeza que se tornou leve”.
Um exemplo é esta cena do capítulo XL, em que Aquiles, nos seus únicos momentos de liberdade, caminha noite adentro: “De noite, perde o medo: é da cor da cidade, caminha sem o fardo de ser visto, ninguém dá por ele. Tem a cor dos pombos, dos vagabundos, dos gatos, das putas do Cais de Sodré […] da cor do céu. É carne da carne das coisas, feito mesmo mármore e vidro negro […]”. Ou ainda a revelação que Justina tem quando passa as férias em Portugal, para dar rumo na casa dos homens: só terá liberdade após a morte, é o único jeito; ela que é filha, mãe, cuidadora e que “ninguém se lembrara de lhe perguntar se era feliz desde que chegara”.
No terceiro ato há essa passagem: “Sabonetes, bolo-rei, colírio, Barbosa da Cunha lia-se em papéis queimados nos quais haviam ardido as preposições, os adjectivos e os artigos, restando o que era substantivo”, uma imagem que serve de metáfora para a relação pai-e-filho e Cartolas-e-Portugal. A dureza se aproxima do vocabulário seco de Fabiano em Vidas Secas, dizer somente o necessário porque dizer também dói, também pressupõe mais esperança, e os substantivos são duros como pedra. É por isso que há uma diferença clara entre o Cartola que convive com o filho e o que responde as cartas de Glória. “Olhar pra trás é abraçar a tristeza, o que não foi”, há um alívio em estar longe da esposa moribunda, sentimento conflitante, é claro. A distância continental o permite falsear um sentimento que ele não consegue esconder pessoalmente porque está gravado no corpo. O contraste do peso e da leveza na correspondência do casal.
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Aqui, a maioria dos personagens tem algum grau de deficiência ou má formação no corpo, como se o mundo (o moinho) os achatasse, compactasse, com suas rotinas e faltas, com a magreza, as casas nos subúrbios, a tentativa de sair de “dentro da barriga da besta” (Stuart Hall). Afinal, a margem é o canto e como se não bastasse estar condicionado a viver nesses limites, as engrenagens cosmopolitas empurram, amputam, apagam. “Todos os Cartola de Sousa se viram adiados pela doença […] Não eram vítimas uns dos outros, nem ninguém tinha torcido os seus sonhos de propósito. No comboio de dívidas, resignação, fome, má vontade e zelo em que a família de cuidadores viajou quase um quarto de século, talvez dentro de cada doente houvesse um tirano e dentro de cada cuidador um carrasco.” A doença não é só mais uma enfermidade: como acontece nas periferias mundo afora (e a pandemia só escancara o óbvio). Nos demais corpos diaspóricos, um obstáculo tem o peso de cem.
Essa condição corporal não se limita apenas à família, mas também aos demais personagens, como é o caso de Pepe, o galego que se torna o melhor amigo do velho angolano: “A dureza da infância deformara o seu corpo, tornando-o atarracado”. Chamam-no “Duende”, mas dele não se vê os ares de uma criatura sobrenatural. É apenas um homem solitário que também cuida de um filho e vê em Cartola uma possibilidade de brisa.
E no último destino para os imigrantes, a Quinta do Paraíso, existe um acalanto. A leveza (enquanto forma) atinge o seu ápice, quando Djaimilia entrelaça flashbacks da infância de Cartola e a correspondência com a esposa moribunda (presente em todo o romance) com a sua relação com Pepe e a deles com Iuri, uma criança da vizinhança.
O nome próprio Paraíso.
Esse lugar fictício: ora onírico, ora relegado ao que sobra.
Os imigrantes Cartola e Aquiles, Pepe e seu filho, Iuri e o cão Tristão. Todos juntos, em algum momento desconectados do centro e unidos nesse descolamento espacial. Há riso nos corações calejados desses seres periféricos, apesar de tudo. São nesses momentos que a autora potencializa cada reação, cada ida ao chuveiro e cada cicatriz explorada. A união de Cartola e Pepe é cheia de amor, apesar das diferenças, há muita coisa que os une. Dois homens cheios de dores, brutos, dançando: “Afastaram a mesa da sala, agarraram-se um ao outro, Cartola muito hirto e gracioso como um dançarino de salão […] A barriga de Pepe a empurrar os abdominais de Cartola. Os joelhos do velho africano a orientarem os passos do galego”.
Tamanha aproximação do narrador aos corpos achatados dos protagonistas, esse close-up, afasta a sombra da outridade: são homens e velhas e filhas e crianças. Quebradiços, fragmentários, imperfeitos. Corpos da periferia do sistema.
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Luanda, Lisboa, Paraíso não narra uma trajetória planejada, mas os descaminhos tortuosos do não-retorno. Djaimilia usa a leveza poética pra solidificar o tecido realista desses personagens: excluídos que se somam. Nesse sentido, é um texto de mãos entrelaçadas (como antes de pular de uma ponte, sabe-se lá pra onde): como os telefonemas intercontinentais, a dança de Cartola e Pepe, Aquiles entrando na grande noite e o levantar de uma parede.
Lucas Litrento é escritor, realizador cinematográfico e produtor cultural, vive em Maceió/AL. Os meninos iam pretos porque iam (Graciliano, 2019) é seu primeiro livro. O zine de poesia ROBYN (1TXW, 2020), foi lançado recentemente. TXOW, de contos, será lançado pela Edipucrs, como vencedor do Prêmio Delfos de Literatura. Assina, com Janderson Felipe, o roteiro e a direção do curta Samuel foi trabalhar (em produção).