Lava as carambolas recém-colhidas do pé, uma a uma. Esfrega com a ponta dos dedos a superfície lisa e cerosa. Remove a bainha lateral já oxidada, meio endurecida, antes de cortar as fatias na grossura de um dedo. O tacho de cobre parece um céu salpicado de estrelas amarelinhas. Verte meio quilo de açúcar, três anises-estrelados, um punhado de cravos e um pau de canela. A madeira estala no fogão, emanando o calor através da chapa de ferro fundido, aquecendo a cozinha inteira. Enxuga o suor da testa com o pano de prato que apoia sobre o ombro. Mexe o tacho com uma colher de pau corroída, o tempo todo para não grudar nenhuma fruta no fundo. Essa receita é uma das que aprendera com a avó.
Janaína aparece apoiada no batente da porta, dentro de um vestido rosa claro desbotado pela ação do alvejante, com uma das alças puída. Procura a mãe à beira do fogão, as pernas trêmulas retorcidas e os pelos eriçados, as pupilas maiores que as de um gato. A brasa crepita mais quente. Sula apenas percebe a presença da filha quando escuta o piso de tábua corrida gemer um ruído áspero. Tira o tacho do fogo e enxuga as mãos suadas na saia. Petrônio vem logo em seguida, erguendo a calça larga após fechar o zíper, ajeitando o cinto de couro frouxo. Masca um toco de palito de dentes, tem os olhos semicerrados, bêbados. A menina se espreme ainda mais contra a parede, tão dura quanto um corpo sem vida, rejeitando o aroma acético do homem que passara ao seu lado. Enquanto percorre a face do marido calada, a mãe fareja o cheiro do medo da filha, a roupa dela tem um ponto empapado no meio das pernas. Sula retorna ao seu posto, rígida, os olhos piscam rápidos e molhados. Volve a colher de maneira mais vigorosa, até atingir o ponto do doce de carambolas da vó Açucena. Janaína atravessa a cozinha e num salto some o corpinho quente e vermelho, descalça pelo quintal. Voltará a noite, sempre voltava.
Petrônio senta-se à mesa, pousa o revólver sobre a toalha plástica ensebada e com um movimento de olhos intima o almoço à mulher. Sula dá a polenta e a galinhada. Devora os pedaços de frango com as mãos, respingando molho vermelho na camisa xadrez e deixando a barba toda oleosa. Repete a refeição. Enquanto ele come, ela coloca o doce em potes de vidro aferventados e deixa arrefecer por completo antes de vedá-los. Procura as tampas dos potes no móvel que dava para cristaleira, fitando a faca de corte. Empunha-a com força e vira-se. O golpe acerta a barriga, a navalha cortando de baixo para cima a carne, o sangue esguicha da mesma forma quando se sangra um porco. Desencrava a faca com dificuldade, agarra os cabelos cinzas, o metal desliza o pescoço e abre um rio vermelho e grosso. Solta a cabeça no prato; o molho de sangue tinge a toalha. No banco da frente, deita a cabeça sobre a mesa para ter certeza de que sangrou bem a carcaça. Lambe o rubro da faca, a ira tem gosto metálico e doce.
Larga a arma na gaveta. O homem bate repetidas vezes com o copo sobre a mesa. Sula o enche com a dose habitual da cachaça, a medida que o marido bebe de um só gole. Grunhe um arroto, o dorso da mão limpa a boca, empurrando o banco de madeira. Ao mesmo tempo, ela lhe pede dinheiro para as compras. Petrônio recolhe o revólver no bolso e joga algumas notas amarrotadas, uma delas rasgada até a metade, e some corredor adentro.
A mãe grita o nome de Janaína no pátio, ecoando no vazio do início da tarde morna. Não aparece. Sula prende na garupa a caixa de madeira contendo os vidros do doce de carambolas arranjados com o maior cuidado e toma a bicicleta rumo à venda do seu Ziquinha, reparando as nêsperas suculentas e redondas agarradas às árvores no caminho. Amanhã farei mais compotas. Janaína vê quando a mãe desce a estrada de terra montada na Monark azul turquesa. Aninha-se no alto da pedra, abre um livro que Sula lhe trouxera certa vez da cidade e não percebe as horas correrem livres pela tarde, agora tingida em tons róseos cedendo lugar à noite repleta de pontos brilhantes.
A menina aparece encolhida, as unhas roídas, esgueirando-se pela parede, quando os dois já estão à mesa, comendo o que sobrara do almoço. A luz baça do lampião destaca as sombras deles e os vultos preenchem o espaço da cozinha. Janaína corre ao quarto, não quer comer. A aguardente desce queimando a garganta de Petrônio, para em seguida montar na Monark e desaparecer na escuridão. Se Sula lhe perguntasse, teria dito que iria até a Whiskeria, sim, lá mesmo, no cruzamento que leva a Riacho de Santa Luzia. Mas ela nunca lhe perguntava nada, não lhe cabia questionar. Qualquer vestígio de pensamento contrário era recoberto pela casca grossa da sobrevivência. Tudo, absolutamente tudo, é melhor que a vida de merda que eu levava na Whiskeria. Quando Petrônio sumia, mãe e filha respiravam, enfim, o alívio da ausência daquele homem, embora soubessem que ele voltaria no meio da madrugada. Ambas já haviam sido acordadas com aquelas mãos sujas e melecadas de aguardente barata que passaram pelos corpos das meninas da Whiskeria. Tomara que ele não volte nunca mais. Naquelas poucas horas quando a realidade se travestia de tranquilidade, era o momento em que ambas podiam sonhar. Sula beija a testa de Janaína recolhida em sua cama, embora a filha a rejeitasse da mesma forma que o padrasto.
As encomendas a esperam no quarto de costuras. Sentada à máquina, forçando a vista na luz fraca, repara no relógio de parede que a noite já havia se adiantado. Corta as fazendas de cetim e brim, se abraça aos tecidos que lhe ofertam o toque macio e suave que há tempos não conhece. A Singer trabalha veloz, costurando aqueles vestidos alheios que desejava vestir. Com os restos de pano vai costurar roupinhas para as bonecas da filha. Exausta, ainda arrumaria a cozinha e temperaria o pernil do almoço do dia seguinte. Janaína, àquela altura, dorme e sonha com estrelas; no seu sonho, ela é uma astronauta.
Leo Baratto é professor universitário e cientista. Coordena o canal de divulgação científica @plantaciencia nas redes sociais. É autor de diversos artigos e livros acadêmicos. Escreve contos e crônicas, com publicações em algumas antologias.