quatro poemas de mônica de aquino

Destruir, ela disse

Primeiro, desfiz a mortalha
como de hábito.

Mas a noite ainda era vasta.

Inventei, então, um presságio
há muito a destruir:

colcha, tapete, rede

este vestido de renda

a trama da cadeira

a cama

a mesa posta.

A agulha é lenta, lenta

a tesoura é lenta

a amor é lento

destruir me rouba a noite
e as estrelas.

Inventar uma pele, a noite

Teço uma ideia de Troia
você está na sobreposição de três fios
teço a guerra na mortalha
posso inventar outra moira
matar uma cidade ou ilha
ninguém conhece os motivos
que as mãos, agora, inventam.

O que fazem tuas mãos, Odisseu
neste duelo de formas
fantasmas sobre as minhas
incapazes de duelar com agulhas
e linhas
desafiam que labirinto as escolhas:
ganha a minha mão o homem capaz
de tecer.

Cem homens dentro do átrio
no lugar do arco, sentar-se,
em silêncio
não o movimento do braço
mas dedos, inventar uma pele
Troia é a noite
ganha a minha mão quem descobre
outra Ítaca.

Sim, ele tece uma casa
sobre a memória
infiel à volta à guerra
açula a lembrança, a espera
aproxime-se, homem que desconheço:
ganha a minha mão quem desperta
a raiva do cão.

As mãos sobre as minhas abertas
a tecer outras linhas: a moira sorri
corta um fio, amarra, ignora o tempo.
Sente-se aqui, tecelão.

Ruína sem vestígios

A morte exige tessitura delicada
tecer um sudário é tramar uma asa, véu de noiva
camada de nuvem, teia que floresce em casulo.
Forma que exige fazer, desfazer, sobrepor
não simulo: antes, é este o método da mortalha.

Não se entra duas vezes no mesmo rio
nem no mesmo mar, cama, corpo
não se recupera um fio, é sempre outra a urdidura
na sombra do exercício: tecer, destecer,
construir uma ruína sem vestígios,
sudário como cidade em chamas
que ilumina a noite.

A morte exige outra pele, tela composta
faço, desfaço, Moira que confunde agulha, linha
tesoura
enquanto a distância joga com as Parcas
entendo:
é de Odisseu o sudário que teço.

Onde o ódio

Depois do reencontro
conta-me de lestrigões, ninfas, batalhas:
dez anos em guerra, dez na volta à casa.
E te falo da espera.
Mas não sei como te contar outra odisseia
             Telêmaco e os primeiros passos, o balbucio
             a palavra pai não pronunciada
                          [distante como um deus no amor e no medo
             os passos na praia, o choro,
             as brincadeiras no átrio, o que entende por reino
             como narrar-te a infância
             como ensinar-te o filho que imita um pai desconhecido

Penso no jeito dele me repreender, a que consentia
como um exercício de dureza
para que suportasse ser filho de um herói
para que não excedesse o ódio
             – era preciso que em mim o dissipasse um pouco

Para que não odiasse o mundo
precisou odiar-me, sim, por vezes, proteger sua memória
ou, antes, a invenção de uma origem.

Adulto, mandava-me ao quarto, as ordens eram suas
dizia-se senhor do palácio, e eu entendia
este caminho até você: precisava também partir
mas estava ali, no frio, na fome, na espera

de si, guardando também
para você a violência.


Mônica de Aquino nasceu em Belo Horizonte, em 1979. Publicou os livros Sístole (2005), Fundo Falso (2018) e Continuar a nascer (2019). Com Fundo Falso, foi vencedora do Prêmio Cidade de Belo Horizonte e finalista do Prêmio Jabuti.