quatro poemas de telma scherer

1

(do livro Depois da água)

 

Ter um tronco na cabeça     um rombo

                                            um olho

            Ter um troço na cabeça

                        um troco    um espaço destroçado.

Ter um osso na cabeça                  um oco

                            ter uma dúvida ao lado.

Ter um filme rodando na cabeça

            um fim      um fundo

                      um falso mundo moribundo.

 Ter laços trocados entre a cabeça e o abraço.

                                                      Ter braços na cabeça

           ter nasgos de fundos-musgos

                                    nacos de lusco-fusco e ter

                         fuscas na cabeça  fornicações  migalhas

                   ações    e     maravalhas             e estrias

Ter mais-valias na cabeça

                                    ter tantos        e tão tontos

                          e poucos migalhos.

          Ter alhos na cabeça                 e cruzes de cabeçalhos

Ter cacarecos e bugalhos         e búzios e espantalhos

                                   e espasmos de exasperações.

Ter modelos de ações na cabeça

                                                         e títulos e ovários

                                ter otários na cabeça

      e altos salários e concursos e minúsculos de músculos

                         entesados.

Ter tesões na cabeça       testões arremessados

                 para o outro lado         Ter baralhos na cabeça

                             embaralhados barulhados

                             embrulhados e burlados.

Ter buracos na cabeça        nacos de nadas

                 tostões e namoradas   Ter nados       lodos

                                   nenhuns e nuvens.

Ter nuvens na cabeça       que passam

                              ter passados          Ter passos na cabeça

           passadas em calçadas              Ter jogos de sapatas

Ter trapaças   ter   traças na cabeça          e braças

                              Ter um ás e um és

                          Ter is e vis-a-vis      à vista da cabeça

            Ter vastos vestígios de martírios.

E ter mares na cabeça   e bulevares de piratas

                          e baratas e baratas

                                        e belvederes de onde se pode ver o que

           se ouve e se Ave  só dentro da cabeça.

 

2

(do livro Desconjunto)

 

Ali

onde o mato alimenta-se de temores

   guardo meus inventos, façanhas.

Façamos as escolhas: a rua faiscante corta os olhos

onde elaquela namora os tropeços e os trovões.

   Moedas a desabitam

   a engolir suor.

Enrolou-se na saia vermelha, mora em segundo andar.

Eu cá preferi um mistério dentro

                  em negror

                             de mato.

               Coelhos caçoadas

               grilos morcegos: cada qual canta a seu jeito.

Às vezes reúno a orquestra

para mostrar minha nova invenção:

invento do medo do arbusto calabouço.

As folhas imensas eu resguardo. Deito-me. À noite chorei:

               meu travesseiro eram pó de pó de vento.

Caibo em cada parte onde escolho um tamanho −

               a brincadeira é costurar cadáveres.

Agora é olhar as fotos: vejo ela com feridas na perna

a equilibrar sapatos de agonia.

   Então estou melhor: visto quinquilharias da mata

e a cada dia invento outra

outra canção.

                                                        Então grilos morcegos

   caçoadas

   arranjos: abelhas ao fundo

   um piano, no bordel.

 

3

(do livro Squirt)

 

           É o meu mar que você cheira, desavergonhado, enquanto massageia as pernas com óleo, fingindo que não vai mais mergulhar a ponta da sua língua no meu segredo. E adia o seu deserto, carregando o peito aberto e bom debaixo do sol forte. E de repente você cruzou oásis e agora penumbra com sua língua essa noite azulada do meu dentro. Afasta com as mãos serenas as superfícies pelas quais passou, para se refrescar, translúcido, e sua com seu sol salgado sob os meus tremores, e pergunta se estou bem, mas não sei responder a esse estado assim absorto nas miragens. Vejo que é um sol, o seu, de irradiações lilases que se alastram pelas minhas extremidades, e também se proliferam de manhã, no meu peito agora dissolvido e bom debaixo do seu sol. O dia nasce e você passeia as pontas dos seus dedos na minha face, suado e satisfeito por ter conseguido me salvar do seu naufrágio.

 

4

 

Meu pai e Miles

têm em comum

apenas o trompete,

além

de serem homens.

 

Soam

os seus músculos

pelas frestas,

nos plenos pulmões

atrevidos.

 

Meu pai e Miles,

mistérios

para mim, menina

que musicava

o momento

apenas

com palavras,

porque não tinha

instrumento.

 

Meu pai, um baque

da porta fechando:

a pasta no chão,

os passos fortes

no vão da escada.

Meu pai

não amava Miles,

mas Chet Baker,

o grito diminuído.

Um foragido

dos seus próprios

ângulos imprecisos.

 

Aprendi a amar

o grito agudo,

pois preciso

de amarelos

andando pela casa.

Sinto o teor

estremecido

das estrelas

(às vezes

adormecidas

no porre de um Chet).

 

Por isso,

com as palavras,

busco o ângulo

do grito,

na urgência

de acordar

as estrelas

contra o mau governo.

 

Com Miles,

sem meu pai,

moldo a minha trompa,

meu próprio

estampido.


Telma Scherer é poeta e professora de literatura brasileira na UFSC. Formada em filosofia e em artes visuais, com mestrado e doutorado em literatura. Publicou o romance Lugares ogros (Caiaponte), o híbrido Entre o vento e o peso da página (Medusa), e cinco livros de poesia, entre eles Desconjunto (IEL), Rumor da casa (7 Letras), Depois da água (Nave) e Squirt (Terra Redonda), semifinalista do prêmio Oceanos.