Saudade do amanhã

POR RENATO TARDIVO

Em entrevista à Folha de São Paulo, em 1994, Raduan Nassar (à época, já aposentado da literatura) menciona um “jovem escritor” que o “impressionou melhor ultimamente […] um rapaz talentoso”. Era João Carrascoza. Não é pouco, convenhamos.

Ainda nos anos 90, Carrascoza publicaria contos excelentes, como “O vaso azul”, não por acaso dedicado a Raduan Nassar. O autor conciliaria as atividades de redator publicitário, professor universitário, autor de livros técnicos e infanto-juvenis, além de coletâneas de contos voltadas ao público adulto. Desde então, Carrascoza vem publicando com regularidade e em alto nível. Destacam-se, em sua literatura, o trabalho com a linguagem e o lirismo.

Após uma sucessão de livros de contos bem recebidos, sendo inclusive finalista do Prêmio Portugal Telecom (atual Oceanos) com Amores mínimos (Record, 2011), Carrascoza estreou no romance com Aos 7 e aos 40 (Alfaguara, 2013). Publicou, na sequência, o romance Caderno de um ausente (Cosac Naify, 2014), que obteve o 2º lugar no Prêmio Jabuti e, em 2017, foi incluído na Trilogia do adeus. O autor continua escrevendo ótimos livros de contos e, recentemente, lançou mais um romance: Elegia do irmão (Alfaguara). Vamos a ele.

Um pouco antes, um pouco depois

O romance é dividido em duas partes: “Um pouco antes” e “Um pouco depois”. Os capítulos, geralmente curtos, guardam certa autonomia, embora se comuniquem. O propósito da trama não é criar mistério em torno do que irá acontecer, pois o narrador-personagem anuncia, de saída, que sua irmã, Mara, está com os dias contados. É para a irmã – e em memória dela – que, com lirismo ímpar, a elegia é escrita, um pouco antes e um pouco depois de ela morrer. E essa escolha faz toda a diferença, porque a morte é abordada de forma indireta, alusiva.

Nesse sentido, a obra de Carrascoza aproxima-se do que propunha o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty acerca da palavra: “a linguagem diz quando renuncia a dizer a coisa mesma”. É silêncio. A esse propósito, o desenho da capa do livro, retomado em versões diferentes antes de cada uma das partes do romance, é emblemático: duas mãos separadas – e conectadas – por uma trama de fios, um “cordume”. Novamente, coloca-se o diálogo com Merleau-Ponty em sua célebre passagem das mãos que, tocadas, se tocam. Há entre elas um hiato que não é o vazio, mas o invisível, o indizível. E, paradoxalmente, é daí que o visível e o dizível, ali preexistentes, nascem e amadurecem, para morrer, “despalavrar”.

Gente qualquer, fadada a morrer

Fragmentada em capítulos curtos e intitulados, a trama procura habitar o limite impreciso entre o antes e o depois, entre uma mão e outra: o instante fugidio que chamamos de realidade. Escrevendo a ausência, a narrativa de Carrascoza humaniza as pessoas: elas se doam e se doem. Assim – e é mais um paradoxo – a linguagem arduamente trabalhada desvela a singeleza e finitude das personagens, em vez de deslumbrá-las ou distanciá-las, seja de si mesmas, seja do leitor:

“não fomos frutos de cepas notáveis, nem de plantas parasitas, aristocratas de sangue azul […] não fomos, eu e Mara, nada disso, senão gente qualquer, fadada a morrer um antes do outro”.

A prosa poética de João Anzanello Carrascoza se volta à essência daquilo que é narrado. O alto teor de lirismo não é adorno. A sintaxe retorcida não é ostentadora. Ao contrário, o que parece interessar ao narrador é a simplicidade. Mas, para alcançá-la, é necessário muito trabalho, muita dor. Daí a beleza da obra: um apanhado tocante de memórias que desenham, como a fumaça espiralada do incenso de que Mara tanto gostava, a “saudade do amanhã”.


Renato Tardivo é escritor, psicanalista e doutor em Psicologia Social. Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê/Fapesp, 2012) e Girassol voltado para a terra (Ateliê, 2015).