*
por isso olhar o que parece parado
o céu, quando há céu
nos vidros refletida a cercadura do mar
as ourelas de um tecido
há sempre o que se perde ao movimento
um pensamento vago, o instante
que se atira dos objetos
por isso olhar o que não se move
para agarrar antes que caia
a veia estática
de um relâmpago
*
me antecipar à palavra e por isso
começar de trás pra frente o caderno
a primeira inscrição no pé
da página flutua, um dente-
-de-leão em chamas
ameaçando as folhas quebradiças
me antecipar à queda incendiária e por isso
escrever perto de torneiras
poças d’água, goteiras
em dias como esse de chuva
*
dias em que as laranjas estarão
ligeiramente ácidas
os olhos mais cansados antes
de chegarmos em casa
noites em que pensaremos
por mais tempo no que corre
conosco furando a terra
dentro dos vagões
em como parece a via láctea
o teto mofado do banheiro
Carla Kinzo nasceu em São Paulo. Publicou Eslovênia (Megamíni, 2017), Cinematógrafo (7Letras, 2014), Matéria (7Letras, 2012 – ProAC Publicação/2011), o infantil Grão (Pólen, 2015) e a plaquete Marco zero (nosotros, editorial, 2018). É também dramaturga e atriz. Os poemas acima fazem parte do livro Satélite, publicado recentemente pela Quelônio, com apoio do II Edital de Publicação de Livros da Cidade de São Paulo.