Um trecho de ‘A linha augusta do campo’, novela de Sidnei Xavier dos Santos

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O pai está com o filho e os dois encaram a câmera. Em toda a vida, é a única fotografia que os une, só os dois no mesmo enquadramento. De fato, o filho não lembra de outra tão nítida, ou que estejam apenas ele e o pai, ou que a foto tenha sido tirada exclusivamente para mostrar os dois, pai e filho posando para quem os fotografa. Lapso de memória do filho, pois há outra, só com os dois, não tão bela como esta, nem tão natural, pai e filho sentados, o filho no braço do sofá, o corpo inclinado para o pai, que larga um sorriso discreto. Mas aquela é acidental, roubada numa distração dos dois, como um flagrante. Esta não, esta foi pedida, pensada para o momento e para a luz que há. Faz calor, dentro e fora da imagem, no interno e externo da cena, no interior e exterior do narrado. O sol é forte, o verão é típico. Os dois sorriem como costumam, sem mostrar os dentes, acham a arcada menor do que a boca, como se ali flutuassem, é estranho, embora haja beleza, e antes foram sempre assim, de sorriso curto, mais satisfação que alegria, não menos feliz que esta, não menos segura que aquela. De fato, vão entre o sério e o jocoso e o riso é só um rascunho do que sentem, esboço concebido em pudor, que os dois sempre acharam que sentimento dá-se aos poucos, em silêncio, talvez os olhos nos digam mais do que diz a boca, que é próprio dos olhos serem mais eloquentes, e era próprio dos dois usarem pouco a fala. Os dois usam óculos, do pai bem colado ao rosto, cobrindo a sobrancelha, o aro grosso e marrom, os olhos bem enquadrados, centrais, já um pouco caídos nos cantos, pela idade certamente, que melancólicos nunca foram, o pai não era do tipo, as pálpebras um pouco baixas, a claridade é forte e a luz vem da esquerda da foto, justo onde está o pai, mas seu olhar é afetuoso, e brilha. O filho usa os óculos sobre o dorso do nariz, tangenciando as linhas superiores do olho e do aro, que é preto e fino, de metal, mais leve que o do pai, que os olhos são também menores, mais amendoados, embora estejam quase inteiros na sombra e se abram mais que a boca, são fixos e incisivos ao fotógrafo, mas ainda assim são convidativos e estimulantes. E brilham. Há mais que se possa dizer da foto, o pai está em pé, o filho, que é mais alto, apoiado em um banco, sua mão direita ao ombro do pai, que está mais firmado ao chão, as mãos cruzadas sobre a barriga saliente, que em outros tempos já fora até mais destacada, enquanto o filho tem mais ângulos, o corpo mais torcido, outra geometria, um pé solto no espaço, o outro pela metade encostando ao chão, apenas dando equilíbrio. A postura do pai é rija, a do filho fluida, mas ambos estão leves, como se pairassem no quadro, como se a pose os elevasse acima, uma vez que os olhos de quem vê a foto, inutilmente resistem a não se elevarem, a não fitarem o rosto dos dois. Ao ver a foto, o filho se sente fotogênico enfim, o que sempre invejara nos retratos do pai, que nunca fora modelo, artista de televisão, nunca posara para propagandas de canetas, mas sempre ficava bem nas fotos, talvez o enquadramento, a proporção das linhas, a naturalidade diante da câmera, o filho nunca soube explicar direito, mas admirava os retratos do pai, enquanto os dele eram raros e arredios, fugia das solenidades de fotos, dos momentos íntimos da família, ou quando era fisgado se enfiava entre os maiores, escondia-se e só parte da cabeça, ou do corpo, nos podia comprovar que ele estava na foto, a mãe teve dificuldades de encontrar-me alguma, três de quando era criança, nenhuma da adolescência, exceto as de rosto que iam para documentos, todas amareladas, para as quais o filho sempre tinha uma ironia, o mau gosto nas roupas, o ridículo das poses, o cabelo desgrenhado, a magreza indisfarçável, a mãe retrucava que as roupas eram do tempo, as poses eram dele, que não queria tirar a foto, o cabelo sempre fora rebelde e a magreza a mãe tentara de tudo, até vermicida lhe enfiara na boca, mas ela gostava dele assim mesmo, que as mães não se importam com a feiura dos filhos, são seus filhos e basta, mesmo que as fotos não tenham graça, mesmo que pareçam ridículas com o tempo. Mas dessa foto com o pai ele gostou, está bem nela, quase tão bem como está o pai, embora o pai ainda se recuperasse e carregasse um leve abatimento, que a magreza incomum denunciava, mas a diferença entre os dois nem é relevante, nem há qualidades que eu queira destacar nesse momento, a foto é boa, colorida e luminosa, e todo o espaço preenchido de silêncio é eloquente. Pai e filho olham além da cena, além do que os captura, a fotografia tem essa absurda qualidade. Naquele dia falaram pouco entre eles, embora a conversa tivesse sido disposta à mesa como iguarias. Pouco também se falaram antes do dia da foto, que o filho telefonava pouco. Pouco se falaram nos dias depois da foto, que os hábitos de ambos não mudaram muito. Algo na imagem, atrás das cores, na geometria das poses, na assertiva dos olhos, nos comunica. Talvez as palavras estejam em negativo, talvez precisem de filtros, talvez o fotógrafo se obrigue a nos explicar sua arte, talvez o que pouco dizem pai e filho precise ser visto nos pontos de luz e de sombra.


Sidnei Xavier dos Santos (1973) é autor de Adão desdenha o Paraíso (Quelônio, 2017), livro de poemas vencedor do Prêmio Nascente USP 2016. O trecho acima é o primeiro capítulo da novela A linha augusta do campo, a ser publicada pela Quelônio.