“a mulher que congelava gatos e todo o resto”, de vivian pizzinga

aquela mulher do andar de cima que congelava gatos: morria um gato, ela congelava, uma geladeira cheia de gatos enregelados. o homem do andar de baixo: recebia um pombo toda manhã, a ave bicava a manteiga, quase sempre voltava à tarde, desdenhava da margarina. o vizinho do corredor cujo vício era em tangerinas: vivia em abstinência durante meses, alucinava o cheiro da bergamota durante a primavera e o verão, no fim do inverno já se angustiava, sofria por antecedência. o zelador do prédio que colecionava maços vazios de cigarros: via-se uma fila deles no chão da portaria encostados ao rodapé, reunião de condomínio para decidir no voto quem reclamaria, quem abordaria a questão, um síndico frouxo que não conseguia dar ordens nem fazer pedidos. a mulher do andar de cima que congelava fatos, um varal de retratos era-lhe um guia fiel, mágoas enregeladas na diagonal da memória. descartava os agoras e dos fatos no varal não fazia sequer um litoral. ineficaz presente assentado no carpete mofado, sua miopia um calo entre um olho e outro. um prédio na esquina da rua colado a um bar onde o forró não faz pausa nem na época da peste, garçons equilibrando-se entre o cansaço próprio e a loucura alheia. um cotidiano citadino: dias úteis enfileirados sem saber em que vão dar, horas e horas de entulhos espalhados na calçada, semáforos, hidrantes, postes enviesados, carros estacionados, latas de lixo desprovidas de glamour, latas de lixo em número recorde. um casal de namorados vira a esquina, carregam debates apaixonados, as conversas são mesmo intermináveis nessas horas. um prédio fosco, curvo, enjaulado na fresca atmosfera do outono. um prédio tosco, surdo, encravado no miolo doce da zona norte.


Vivian Pizzinga é escritora e psicanalista. Autora do livro de poemas Ruído nos dentes (Urutau, no prelo) e dos livros de contos A primavera entra pelos pés e Dias Roucos e Vontades Absurdas (Oito e meio, 2015, 2013).