“das oferendas que os bichos levam”, conto de guilherme pavarin

1.

Tão óbvio que esquecemos: toda casa esconde muitas casas.

2.

Naqueles anos, muitos animais desapareciam do nosso quintal. Assim que sentíamos falta de um, outros davam as caras no portão; alguns com curativos nos olhos, só pele e osso; havia também os idosos, de orelhas caídas, e os mancos, que apareciam em duplas ou trios. Como se ali funcionasse um albergue, uma pensão.

3.

Dávamos ração e comida, alisávamos seus dorsos. Retirávamos pulgas, sarnas, carrapatos e outras pragas. Mas era só eu e minhas irmãs nos acostumarmos e chamá-los por nomes próprios que não os víamos mais.

4.

Até mesmo as tartarugas nos escapavam; embora nunca testemunhássemos as fugas, sabíamos, pelas marcas das folhas, que elas levavam pedaços da nossa horta para onde iam. Quando amanhecia, as plantas pareciam alvejadas de pequenos sóis.

5.

Nossa mãe, em busca de explicações para os sumiços, passou a ler muitos manuais zoológicos. Ela dizia que anfíbios, vários mamíferos e boa parte das aves e dos invertebrados estocam alimentos em tocas. De alguma forma, nós, os vivos, éramos regidos pela mesma lógica — a de não só tentar prever, mas também encurtar a travessia do dia seguinte.

6.

Que me lembre, apenas uma, dentre tantas, voltou. Reconhecemos pelas marcas de X nos anéis da carapaça — como se, a cada ano, aquela tartaruga contornasse os mesmos enigmas. Antes de tombar-se de costas entre as bromélias do jardim, ela deixou, dentro do casco, três pedras cristalinas. Do tamanho de botões de camisa; uma de cada cor.

7.

Talvez tenha sido ali, com o arranjo das pedras, que nossa mãe passou a guardar as oferendas que os bichos traziam. Ao ver um cachorro cavar um canteiro e depositar, sem muito jeito, uma tampa de garrafa, ela dizia que aquilo era uma memória genética. Um comportamento herdado que se perdeu na vida prática. E então, como uma arqueóloga amadora, botava uma sacola nas mãos e depositava o artefato dentro de um vidro.

8.

Os gatos nos traziam flores, mas também chupetas, parafusos, tampas de caneta, insetos. Alguns deles gostavam de deixar, no tapete da cozinha, as contas de luz de algum vizinho. Nossa mãe sempre acreditava que havia algo por trás; uma mensagem ou previsão.

9.

Havia, é claro, a explicação evolutiva. Sempre há — ainda que nunca explique tudo.

10.

Felinos não-domesticados recebem desde cedo uma educação alimentar. Primeiro, a mãe traz presas mortas para os filhotes comerem. Depois, leva bichos vivos para que a prole mate. É o treinamento para que possam, no futuro, providenciar a própria refeição. É também o hábito que os guia até hoje: quando os gatos nos trazem algo, estão nos ensinando a caçar.

11.

Lembro de nossa mãe dizer — talvez não com essas palavras: o quanto do que achamos das oferendas não diz respeito às nossas próprias faltas?

12.

Minhas irmãs saíram de casa e acompanhei, sozinho, nossa mãe se interessar, cada vez mais, pelas oferendas dos animais minúsculos. Gostava dos besouros (que carregavam grampos), das lagartas (donas de microbolinhas de papel) e dos grilos (capazes de esconder pequenos novelos de tabaco), mas nada que se comparasse à sua obsessão pelas formigas.

13.

Agachada, ela observava os gramados, os vãos dos azulejos e os interiores dos troncos; às vezes, deixava flocos de cereal em alguma posição estratégica para atrair uma fileira de formigas. Assim rastreava os caminhos delas e notava o que elas abandonavam na entrada do formigueiro. Catalogou: sementes, pétalas, macarrão cru, folhas dos mais variados tipos, ciscos.

14.

Enquanto analisava, com método, as folhas deixadas pelas formigas, nossa mãe uma vez disse que havia, no centro do formigueiro, algo parecido com uma ponte terrosa onde os insetos sumiam. Ao passar por aquela elevação, dizia, as fileiras de pontos negros e vermelhos mudavam para uma cor esbranquiçada e, aos poucos, evanesciam. Nada tirava da cabeça dela que se tratava de um mapa ou uma miniatura da nossa casa.

15.

Ainda hoje, quando volto para casa, vejo-a deitada no mesmo jardim. Conversamos à mesa da cozinha, onde ela me serve um café com pães e toma cuidado para que eu não limpe os farelos com muito zelo. Há algo de sagrado no seu gesto, ainda que minhas irmãs acreditem ser sintoma de alguma doença incurável. Elas sempre desconversam quando digo que vou visitar nossa mãe.


Guilherme Pavarin (São Paulo,1987) é jornalista, pesquisador e escritor. Atuou como repórter e editor em diversas publicações, como Época e Vice, e colabora esporadicamente com a revista piauí. Estudou jornalismo na Cásper Líbero e letras na Universidade de São Paulo. Faz mestrado em Literatura Brasileira na mesma USP. Publicou o livro de poemas O maquinário fantasma (Urutau, 2022).