“um planetinha corcundinha”, poema de tomaz amorim

um planetinha corcundinha

eu sou um planetinha corcunda
gelado no norte
e com uma estrela sem pernas
tatuada no polo sul

rodopio pela galáxia sem certeza
se vou para adiante ou para trás
e na minha confusão
às vezes já me vejo
de ponta cabeça
com a estrela às avessas

sou pequeno e maciço
tímido
minha órbita é torta
imprevisível
ninguém sabe
quando começa
o inverno
e termina o verão
às vezes neva alegre
num dia comprido
vejo de longe meus irmãos gasosos
a imagem da majestade
carregados de coroas e anéis
sabem bem onde pisam
como rodam
cada dia na precisão de um ponteiro
cada ave em trajetória migratória exata
segundo os mapas do céu
e a orientação do eixo magnético

não me destaco também
pelos passageiros
não sendo muito inteligentes
não devem explorar a galáxia
no futuro próximo
minha pele é quase toda
tomada por lesmas peludas
quase sem violência
ocupadas em mastigar alface
e admirar nossos pores do sol

confesso que nesse sentido
sou bem servido
enquanto meus irmãos mais encorpados
dançam em um balé de nobreza
vestidos nas roupas mais elegantes
cercados por dúzias de serviçais
estão diante de um único rei
seu sol central

aqui neste canto estranho do universo
onde fui nascer
rebolo numa órbita exótica
filho único
espremido e iluminado
por três grandes estrelas
por isso
aqui é sempre aurora
aqui é sempre ocaso

e talvez por isso
um pouco da paz
de sentar e mastigar
desatento
grátis
pôr do sol depois de pôr do sol

e como a noite é rara e celebrada
fomos aprendendo a sonhar de dia
inesperados e corcundinhas
impontuais
quase sem ambição
à luz dos grandes iluminados
em órbita escandalosa pela galáxia
alegres
quase privilegiados


Tomaz Amorim é pesquisador e poeta. Tem doutorado em teoria literária pela USP. É autor de Plástico pluma (Urutau, 2018) e de Meia lua soco (Primata, 2020).