um trecho de ‘a origem da água’, romance de ana cristina braga martes

O projeto deste livro foi desenvolvido durante o curso de pós-graduação no ISE-Vera Cruz, em São Paulo. O livro foi livremente inspirado na escritora Maura Lopes Cançado, com a intenção de explorar o fio, por vezes tênue, que separa ficção e realidade. O tema da loucura está presente, o sofrimento e a impotência que ela gera, mas também busca explorar o lado criativo e saudável de uma mulher tida como louca e incompreendida na sociedade patriarcal do início do século XX. Muito adiante do seu tempo, a vida da protagonista Laura é marcada pela busca da liberdade não concedida às mulheres de sua época, tanto no plano profissional, quanto sexual, e pelo desafio às instituições pelas quais passou: família, casamento, maternidade, escola, trabalho e hospício.


 

No dia 25-10-1954 dei entrada no Centro Psiquiátrico Nacional no bairro Engenho de Dentro, Rio de Janeiro. Hospital Gustavo Riedel, seção Tillemont Fontes. Foi uma internação voluntária, antecedida por uma crise mais séria. Tentativa de suicídio em meio a um surto psicótico no ápice de uma depressão. Minha idade: vinte e cinco anos.

Entro no hospício com o medo abissal que anima os rituais de iniciação. Reverência de iniciante espelhada nos olhos dos enfermeiros, dos empregados da limpeza, da manutenção e principalmente dos médicos. Respeito, cordialidade a distância: no hospício tudo é silêncio. É fácil perceber. O silêncio típico dos intervalos, lá, antecede e dá sequência. Alguns silêncios se quebram com o tempo. É quando fendas de futuro se abrem. Outros são eternos. O silêncio do administrador-chefe, incumbido do registro e da documentação, é eterno. Ele não nos trata como gente, não é do seu ofício. Passado o guichê e um longo corredor, no primeiro esbarrão já se percebe: tratar uma pessoa como louca é fechar a boca à sua frente, exercer muda contenção à sua volta. Te deixam ali, flutuando na boia preta da ausência. Passar diante de um louco evoca a não palavra. Gestos mínimos, distância de cego nos olhos. Nesse momento, é como se não existíssemos mais. Ficamos ali, de um lado para outro, abandonados na boia preta. Identificar um louco é tornar-se cego, mudo e surdo na sua presença. O louco é introduzido numa terra reinaugurada: ora inexistência, ora ficção. O silêncio dedicado aos loucos é o deslocamento imposto por um espaço retalhado na ponta da navalha. E o círculo se fecha quando, para o louco, o silêncio do outro chega como incitamento. É quando o louco agride e, finalmente, a agressão encerra nele toda a loucura. Selo grudado na testa.

Uma enfermeira me acompanha até o quarto, me faz trocar de roupa, vestir o uniforme cinza, depois de constatar que não trazia comigo objetos cortantes ou pontiagudos. Pede que eu espere. Dois outros enfermeiros entram, todos vestidos de branco. Um deles espia dentro de mim à procura de um desejo de morte no meu esconderijo. Ambos me apresentam suas máscaras. Higienizadas, limpas, quase intactas. Também na aparência dos internos, um padrão único se repete: a mesma vestimenta em diferentes corpos. Apenas duas cores, branco e cinza, estabelecem distinção e hierarquia. Uma lógica fácil estampada nas roupas, tudo muito simples e claro para mim. Os funcionários recebem os novos internos com parcimônia. Isso é só o começo.

Cinza é a cor do hospício, é a cor do pano que cobre nossos corpos. Não é a cor das paredes internas, nem da fachada, nem dos muros altos e ásperos que encerram os loucos nos pátios inóspitos, nos cubículos onde tentam dormir, nos refeitórios feitos para engolir comida. Cinza é a cor que adensa o hospício. É a cor das coisas cruas, daquilo que não pode ser cozido e, por isso, permanecerá duro, impenetrável. Pedras, cimento armado, céu com chuva; cinza é tudo o que não mais se aquece. Combustão impossível, cinza é pós-combustão, resignação escondendo o desespero. É mistura e confunde.

Dizem que silêncio é paz, mas eu duvido.

Noite no hospício é vigília. Na primeira noite eu não dormi. Aqui dentro, quando tudo é silêncio, espera-se um grito, o surto, a histeria. Em silêncio todos esperam um berro no meio da noite, uma tentativa de suicídio. No hospício ou se dorme ou se aguarda. Precisava descobrir e descobri: nada é mais denso que o vazio. O vazio é o invólucro que, ao separar sangue e nervos, aparta minha carne da sua. Estrutura irredutível, nada é mais real que o vazio. Orientar-se por ele é ficar exposta em carne viva, porque não posso tocar na parede áspera do muro sem ser, eu mesma, muro e aspereza.

Disciplina e remédio para reduzir riscos, mas não para todas as pessoas e nunca se sabe para quem. Pensei que no hospício pudesse conhecer e tratar minha doença porque, mesmo que eu a ignorasse, ela me revelaria: uma cor branca, espessa e espumosa foi o início. Vozes sem rosto, emitidas de todos os objetos ao redor, me incitavam e eu me debatia, querendo saber qual parte de mim era a doença, a patologia para a qual não havia diagnóstico, apenas localização física: cabeça. Saber seu nome para alcançar a cura, ainda acredito nisso. Mas alguém havia dito: a consciência da doença faz parte do universo mórbido do louco. E também disseram que a consciência da loucura é o primeiro passo para contê-la. E também dizem que… e fico confusa.

Não trouxe nada comigo, exceto uma bolsa com um pente e quase nenhum dinheiro. Dentro dela, um retrato que colei na parede do quarto, ao lado da cama, um pouco acima. Era meu o nome daquela mulher com um sorriso inclinado à felicidade.

Exercício solitário de autocontrole. Foram assim as primeiras manhãs. Medo. Tomamos sol no pátio. Dentro do quadrado, desenho círculos com os braços para dizer: tudo aqui reverbera. Tudo é silêncio e reverbera aqui dentro, aqui dentro de mim. Sou pedra atirada num lago esquecido, longínquo, límpido e, quando afundar, já terei me replicado; serei o eco das palavras grafadas nos círculos desenhados na superfície espelhada.

Aqui a água é pouca e já chega suja nas torneiras. Do lado de cá pedras rolam pelo chão, mas eu desaprendi a falar com elas. Restos de plantas maceradas no canto dos muros, arrancadas com raiva e sem raiz. Nesse pátio, só as sombras das árvores se mexem, evoluem com as horas. Alongam-se, enquanto o resto fenece como um suspiro difícil. Cercado, este espaço encarna minha falta de intimidade. Bem ali, olhe lá: lobos invasores uivam por trás dos muros, preparando a ocupação. Aqui, nem tijolos nem arames demarcam fronteiras. Os muros e seus lobos também me confundem.

*

O segundo domingo amanhece ensolarado, antevejo outra direção. Há rodas nas cadeiras, na cama, na mesa. Vou ao pátio depois do café e conheço dona Stella. Uma mulher de quarenta e poucos anos, negra e muito magra. Dona Stella usa óculos de lentes grossas e sujas, que disfarçam seus olhos de intelectual. Sentada ao meu lado no banco, ela me revela um segredo enquanto tira os sapatos: escrevo poesia. Vou te explicar: muitas palavras não sei bem o que são, acho que sei pelo som. Ainda hoje vi no espelho: sou preta. No vidro das janelas sou preta também — e também tenho vidro no olho que é meu espelho — e no vidro do olho, eu sou preta. Sou preta também dentro dele: dentro do meu olho preto.

Ela me pergunta: isso é poesia? E ela mesma responde: É. E dá sequência: por que sai de algum lugar? Por que nasce sem ter sido ovo, brota sem ter sido muda nem semente? Por que ninguém liga e mesmo assim dá vontade de repetir? Não sei. Esfrega os pés descalços no cimento e continua: falo coisas, mas falo pouco, quase não falo. Assim é a poesia que eu faço. Eu não faço nada porque, pra fazer, eu tinha que dedicar trabalho e eu não sei trabalhar palavra. Faço o que gosto, gosto da música da rima porque rima é a música das palavras. Sou boa do ouvido e da boca, é só isso que funciona aqui. Aí, quando tem rima, eu agarro, como se tivesse lá com ela, junto dela. Elas rolam da minha boca, minha língua vira tábua inclinada. E quando dizem que eu falo sozinha, eu explico: falo sozinha porque ninguém fala comigo.

Dona Stella pede licença para continuar: tive pai. O sangue do pai, não vi. Mas é o sangue que irriga o pensamento quando me lembro dele. O pai é o sangue da cabeça pensando em mim. Acharam que isso é poesia, mas eu sei que é artéria rompida. Minha lida, ida, ida, já vou.

Faz uma pausa, me olha por cima dos óculos para saber se eu não vou embora. Vê que não, então prossegue: você pode me trazer um cigarro? Uso óculos, mas o que sei eu da vida? Meia dúzia de palavras e coisas de limpeza, porque tenho educação.

Agora já vou. Tenho que tirar a tinta branca dessa parede, a parede vai ficar pelada pra eu vestir ela de novo. A pele da parede é pra proteger, porque parede é parede, rede, rede, rede.

Veste os sapatos de novo e pergunta: você também ouve vozes? Todo mundo aqui ouve, por isso que fica esse barulhão. Aí a cabeça fervilha, ilha. Já vou, preciso limpar a parede.

Dona Stella sumiu, não a encontro mais. Algumas internas viram quando foi levada para um quarto que chamam de cela-forte, durante o almoço, logo depois de ter pedido outro prato de comida. Disseram-lhe que não, mas ela insistiu, não havia ganhado nenhum pedaço de carne. A copeira foi seca: sai daqui, deixa a fila andar. Dona Stella pediu de novo, elevando a voz. A cozinheira interveio: sai daqui, cadela. Dona Stella respondeu: Stella não rima com cadela. Não rima não, dona rainha. Deu um murro no prato e, com suas mãos pretas e dedos finos, atirou a caneca de água contra a cozinheira. Vi naquilo um gesto meu. Dona Stella xingou, esmurrou a parede. As guardas a levaram.

Nenhuma interna se importa, parecem acostumadas. Com o tempo, concluo que neste lugar tudo acaba sendo natural. Pior: aqui dentro tudo vira banalidade porque todo grito, horror, medo é segundo-minuto-hora como se fosse parede, porta, corredor.

*

Quando se entra num lugar como esse, o nome não tem a menor importância. O que importa é a resposta da pergunta: por que você veio parar aqui?

Desde sempre um sentimento romântico me predispôs ao internato: alcovas, colégios, clausuras, depois sanatórios e hospitais, todos eles refúgios pacificados. Proteção, paredes pintadas com cal, passarinhos azuis na dobra do lençol, os banhos no riacho e na represa, meu pai subindo, comigo no colo, a escadaria da casa na fazenda. Depois, a ordem inabalável do colégio, eu precisava dela para não me desorganizar. Quadrados eram quadrados, os círculos se mantinham parados e não havia espelhos que refletissem senão o que estivesse à frente. As paredes internas eram apenas brancas, e isso eu sabia: branco dissimulando assepsia e disciplina. Tudo contido, tudo de que não podíamos prescindir, nós, meninas do colégio. Protegida, eu buscava verdades absolutas para sentir a castidade revelada na minha autoconfissão. A tinta me dissolvendo nos muros imaculados do colégio e, enquanto me desintegrava, concluía: nasci para ser casta, sou pura por dentro.

Perguntam por que estou aqui e se é verdade que pedi para ser internada. Vim fugindo da morte, mas não me lembro desse medo. Cheguei tomada por uma convicção paradoxal: queria viver. Viver sem o temor desorientado que me organizava apenas para hierarquizar obsessões. Obsessão número um: evadir; dois: despencar; três: virar pedra. E posso garantir que nenhuma delas é o medo da morte. Pensar na morte ainda me encoraja. Eu queria me curar, por isso vim parar aqui. Mas quem acredita nisso?

Se me perguntam por que me internei, revejo a cena que antecedeu minha chegada. Os vidros estavam cheios. Esmaguei os comprimidos um a um, com a faca que tinha usado para descascar uma laranja que não comi. Em cima da mesa coberta com uma toalha de linho branco em que bordei ridículos passarinhos azuis, de um lado, a laranja que não conseguia morder e, de outro, os vidros de remédio ainda cheios. Um para acalmar, outro para dormir, o terceiro para evitar convulsões. Havia um quarto… Despejei os comprimidos esmagados num copo de vidro e olhei obstinada o pó se dissolvendo no uísque. Usei a faca para mexer. Não senti cheiro nem gosto de nada. Uma altivez inusitada tomou conta de mim e de todo quarto, quando engoli, de uma vez, o líquido espesso, granuloso.


Ana Cristina Braga Martes é socióloga e foi professora da Fundação Getulio Vargas até 2019, de onde saiu para se dedicar integralmente à literatura. Nascida em Varginha (MG), passou sua infância e juventude de São Carlos (SP), formou-se em Ciências Sociais pela UNESP/Araraquara, doutorou-se pela Universidade de São Paulo (USP) tendo feito parte do seu doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Foi Pesquisadora Visitante na Universidade de Boston (BU) e fez pós-doutorado na Universidade de Londres (King’s College). Publicou e organizou diversos artigos e livros acadêmicos. A
origem da água é seu primeiro livro de ficção.